Protocolo de ISC da ANVISA: descubra o que realmente muda na prática da CCIH, quais medidas avançam na segurança cirúrgica e onde ainda residem riscos silenciosos para pacientes e gestores hospitalares.
Introdução
A publicação do novo Protocolo de Prevenção de Infecção de Sítio Cirúrgico pela ANVISA, em parceria com a EBSERH, marca um movimento relevante na tentativa de padronização das práticas preventivas no cenário cirúrgico brasileiro. No entanto, a pergunta que incomoda — e precisa incomodar — é simples: estamos diante de um verdadeiro salto em segurança do paciente ou apenas de mais um esforço normativo com difícil aplicabilidade real?
Enquanto o documento apresenta avanços operacionais importantes, como fichas prontas, indicadores estruturados e diretrizes claras para a equipe multiprofissional, ele também silencia sobre recomendações já consagradas internacionalmente — como uso de suturas com triclosan, hiperoxigenação e terapia por pressão negativa em incisões de alto risco. Esse contraste impõe reflexão obrigatória aos controladores de infecção e gestores: seguir o protocolo será suficiente para reduzir ISC ou estaremos institucionalizando uma falsa sensação de segurança?
Este artigo propõe uma leitura crítica, técnica e estratégica do documento, confrontando suas diretrizes com guidelines internacionais e com a realidade operacional dos hospitais brasileiros.
1. Objetivo e Responsáveis
Objetivo do Guia:
O documento intitulado “Protocolo de Prevenção de Infecção de Sítio Cirúrgico (ISC)” tem como objetivo sistematizar a implementação de medidas prioritárias para a prevenção de ISC em pacientes submetidos a procedimentos cirúrgicos. Ele visa fornecer orientações à equipe multiprofissional para reduzir a ocorrência dessas infecções e garantir a segurança do paciente, servindo como um modelo editável para que hospitais (especialmente da rede EBSERH e SUS) elaborem seus próprios documentos institucionais.
Entidades Responsáveis:
O documento é fruto de uma parceria governamental entre:
- ANVISA: Agência Nacional de Vigilância Sanitária (especificamente a Gerência de Vigilância e Monitoramento em Serviços de Saúde – GVIMS e GGTES).
- EBSERH: Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (gestora dos hospitais universitários federais) .
2. Análise da Metodologia e Revisão Bibliográfica
Metodologia de Revisão e Fontes:
O guia não descreve uma metodologia de revisão sistemática da literatura.
- Ausência de Métricas: Não informa estratégias de busca (strings), bases de dados pesquisadas, critérios de inclusão/exclusão ou número de artigos encontrados/selecionados.
- Fontes Citadas: As referências bibliográficas listadas ao final (seção 10) são documentos secundários e diretrizes de outras agências reguladoras ou sociedades científicas, e não estudos primários. As fontes principais incluem:
- CDC (2017/2024): Guidelines for Prevention of SSI e manuais do NHSN.
- SHEA/IDSA/APIC (2022/2023): Atualizações de práticas recomendadas.
- OMS (2009): Diretrizes de cirurgia segura.
- ABNT: Normas técnicas de engenharia (NBR 7256:2021).
- Patrocínio e Conflito de Interesse: Não há declaração de conflito de interesses no texto. Por ser um documento técnico governamental, entende-se que foi financiado com recursos públicos, sem patrocínio da indústria farmacêutica declarado no corpo do texto.
Classificação das Evidências:
Diferente de diretrizes clínicas estritas (como as do IDSA), este documento não classifica o nível de evidência (ex: Nível I, II, III) ou a força da recomendação (ex: Forte/Fraca) para cada item no corpo do texto. Ele assume as recomendações como “boas práticas baseadas em evidências” já consolidadas por outras entidades.
3. Avaliação da Qualidade (GRADE / PRISMA / HICPAC)
Avaliação Crítica:
- PRISMA (Systematic Reviews): O guia reprovaria em uma avaliação pelo checklist PRISMA, pois falha em reportar o processo de busca, seleção, extração de dados e avaliação de viés dos estudos primários. Ele funciona como um Instrumento de Implementação (Protocolo Operacional), não como uma Revisão Sistemática.
- GRADE: Não é possível avaliar a qualidade do guia pelo sistema GRADE diretamente, pois ele não apresenta as tabelas de “sumário de achados” que conectam a certeza da evidência à recomendação.
- HICPAC (Categorização): O guia segue a lógica do HICPAC (CDC) de categorizar medidas em “Fazer” e “Não Fazer”, focando na aplicabilidade prática.
Aplicabilidade Prática:
A aplicabilidade é alta para o cenário brasileiro. O guia fornece o “como fazer” administrativo: checklists, tabelas de responsabilidades e fichas de indicadores (Apêndices B a F) . Ele preenche a lacuna entre a ciência (o que fazer) e a gestão (como monitorar).
4. Recomendações e Fundamentação
As recomendações são divididas por fase perioperatória.
Principais Recomendações:
- Pré-Operatório:
- Banho: Com clorexidina 4% (preferencialmente) ou sabão neutro na véspera/manhã.
- Tricotomia: Nunca com lâmina. Apenas se necessário, com tricotomizador elétrico (clipper), fora da sala cirúrgica e próximo ao horário da cirurgia.
- Triagem de S. aureus: Recomendada para cirurgias de alto risco (ortopedia/cardíaca) com protocolo de descolonização (mupirocina nasal + banho de clorexidina) por 5 dias.
- Intraoperatório:
- Antibioticoprofilaxia: Administrar até 60 min antes da incisão (120 min para Vancomicina/Fluoroquinolonas). Suspender em até 24h após o fim da cirurgia.
- Preparo da Pele: Clorexidina alcoólica 2% é o padrão ouro (exceto alergia ou cirurgias oftálmicas/otológicas).
- Normotermia: Manter temperatura > 35,5°C.
- Controle Glicêmico: Manter glicemia entre 110 e 150 mg/dL (em pacientes diabéticos ou não). Crítica: Esta meta é extremamente rigorosa para enfermarias gerais e difere do CDC (<200 mg/dL).
- Ambiente:
- Temperatura 20-24°C, Umidade 40-60%, Pressão positiva, Mínimo 25 trocas de ar/hora16.
5. Análise Comparativa e Lacunas (Omissões)
Comparação com Diretrizes Internacionais (CDC 2017 / WHO 2016):
O que o guia converge:
- Abolição de lâminas de barbear.
- Timing do antibiótico.
- Uso preferencial de solução alcoólica para preparo da pele.
O que o guia inova (Contexto Brasil):
- Vigilância Pós-Alta: O guia enfatiza a busca ativa pós-alta (Apêndice C), reconhecendo que no Brasil muitos pacientes perdem o seguimento.
- Estrutura Editável: A proposta de ser um “modelo” (template) com campos para logomarca e validação local é uma inovação de gestão, não clínica.
O que o guia deixou de informar (Lacunas/Divergências):
- Hiperoxigenação (FiO2 80%): A OMS (2016) recomenda fortemente o aumento da fração inspirada de oxigênio no intra e pós-operatório imediato para pacientes intubados. O protocolo da ANVISA não menciona esta medida.
- Irrigação da Ferida: O CDC discute a irrigação com solução aquosa de iodopovidona. O guia não aborda o tema.
- Suturas com Triclosan: Recomendadas pela OMS e condicionais pelo CDC. O guia omite.
- Terapia por Pressão Negativa (Curativo a Vácuo): Recomendada pelo CDC (2017) para incisões fechadas de alto risco (ex: artroplastia). O guia não menciona.
- Controle Glicêmico Rigoroso: O guia estipula 110-150 mg/dL. O CDC (2017) e a SHEA recomendam < 200 mg/dL. A meta da ANVISA é mais difícil de atingir e aumenta o risco de hipoglicemia se não houver protocolo de insulina venosa intensiva.
Campos para Pesquisa Futura:
- Custo-efetividade da vigilância pós-alta automatizada (apps/telefonia) no SUS.
- Adesão ao alvo glicêmico restrito (110-150 mg/dL) em hospitais sem UTI dedicada.
- Impacto da implementação destes “modelos prontos” na redução real das taxas de ISC no Brasil.
6. Conclusão
O novo Protocolo de Prevenção de ISC da ANVISA revela um esforço louvável de organização e padronização, especialmente ao oferecer modelos editáveis e indicadores que facilitam a implementação local. Contudo, segurança do paciente não se constrói apenas com boas intenções normativas — exige coerência científica, aplicabilidade prática e transparência metodológica.
A ausência de classificação do nível de evidência, a omissão de recomendações já consolidadas internacionalmente e a imposição de metas de controle glicêmico excessivamente rigorosas abrem espaço para riscos evitáveis e aumento potencial de eventos adversos, como hipoglicemia no intraoperatório.
O desafio que se impõe aos gestores e às CCIHs não é apenas “cumprir o protocolo”, mas questioná-lo, adaptá-lo criticamente e integrá-lo em uma estratégia robusta de vigilância, educação continuada e monitoramento de resultados reais. O futuro da prevenção de ISC no Brasil não depende de protocolos perfeitos — mas de instituições corajosas o suficiente para ir além deles.
7. Referências Bibliográficas e Leitura Recomendada
Fonte Primária Analisada:
- AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA); EMPRESA BRASILEIRA DE SERVIÇOS HOSPITALARES (EBSERH). Protocolo de Prevenção de Infecção de Sítio Cirúrgico (ISC): Modelo de Protocolo. Brasília: ANVISA, 2025. Disponível em: Protocolo2PreveodeISCFINAL
Artigos Relacionados (Pesquisa Externa):
- BERRÍOS-TORRES, S. I. et al. Centers for Disease Control and Prevention Guideline for the Prevention of Surgical Site Infection, 2017. JAMA Surgery, v. 152, n. 8, p. 784-791, 2017. DOI: https://doi.org/10.1001/jamasurg.2017.0904
* Resumo: Base global para prevenção de ISC. Difere da ANVISA no alvo glicêmico (<200 mg/dL) e recomenda pressão negativa profilática em casos selecionados.
- ALLEGRANZI, B. et al. Global guidelines for the prevention of surgical site infection. The Lancet Infectious Diseases, v. 16, n. 12, p. e276-e287, 2016. DOI: https://doi.org/10.1016/S1473-3099(16)30402-9 .
* Resumo: Diretriz da OMS que introduziu a recomendação forte de alta FiO2 (80%) e suturas revestidas com triclosan, pontos ausentes no guia da ANVISA.
- CALDERWOOD, M. S. et al. Strategies to prevent surgical site infections in acute-care hospitals: 2022 Update. Infection Control & Hospital Epidemiology, v. 44, n. 5, p. 695-720, 2023. DOI: https://doi.org/10.1017/ice.2022.108.
* Resumo: Atualização da SHEA/IDSA focada em implementação. Reforça a descolonização de S. aureus para cirurgias cardíacas e ortopédicas, alinhado com a ANVISA.
Artigos do Portal CCIH MED:
- Título: Prevenção de infecção do sítio cirúrgico (ISC): recomendações do CDC.
- Título: Medidas para prevenção de infecção em sítio cirúrgico.
Autor:
Antonio Tadeu Fernandes:
Médico pela FMUSP com residência em Moléstias Infecciosas no HCFMUSP e mestrado em Medicina Preventiva na FMUSP.
Ex-presidente da APECIH e da ABIH.
Autor do livro: “Infecção Hospitalar e suas Interfaces na Área da Saúde” (premio Jabuti como mlehor publicação em Ciências Neturais e Saúde).
CEO do Instituto CCIH+
https://www.linkedin.com/in/mba-gest%C3%A3o-ccih-a-tadeu-fernandes-11275529/
https://www.instagram.com/tadeuccih/
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