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Quando o infectologista pode errar, menos pode ser mais

Estará o infectologista errando em seus princípios dogmáticos para tratar empiricamente pacientes graves? Saiba o que este estudo questiona, merecendo uma reflexão e um comentário seu, pois parte dos achados é bem polêmica.

A prática clínica, há muito tempo, tem sido guiada pela máxima de que a terapia antibiótica empírica deve ser iniciada de forma abrangente e precoce para garantir desfechos favoráveis, especialmente em infecções graves. Essa abordagem, embora bem-intencionada, frequentemente resulta no uso excessivo de antibióticos de amplo espectro, contribuindo para o alarmante cenário da resistência antimicrobiana.

No entanto, um estudo recente e robusto, intitulado “Association Between Delayed Broad-Spectrum Gram-negative Antibiotics and Clinical Outcomes: How Much Does Getting It Right With Empiric Antibiotics Matter?”, publicado na   Clinical Infectious Diseases, desafia essa crença conhecida, oferecendo uma perspectiva crítica e curiosa sobre o manejo da terapia empírica para infecções por Gram-negativos. Este artigo propõe uma reflexão profunda sobre a segurança e a eficácia de uma abordagem mais ponderada, que prioriza a especificidade em detrimento da amplitude inicial, sem comprometer a segurança do paciente.

O principal achado: Menos pode ser mais

O achado central do estudo é contraintuitivo para muitos clínicos: em uma vasta amostra de pacientes adultos hospitalizados que, em última análise, necessitaram de terapia antibiótica de amplo espectro, o atraso na iniciação de um antibiótico de amplo espectro não foi associado a piores desfechos clínicos. Essa constatação desafia diretamente a premissa de que “acertar de primeira” com um antibiótico de amplo espectro é sempre a estratégia mais segura.

Especificamente, o estudo comparou pacientes que receberam Terapia de Amplo Espectro Atrasada (DBT), ou seja, iniciaram com antibióticos de espectro estreito e escalonaram para amplo espectro, com aqueles que receberam Terapia de Amplo Espectro Precoce (EBT), começando imediatamente com amplo espectro. Na coorte pareada, a mortalidade foi de 8,7% para DBT e 9,5% para EBT (P=.022), e a readmissão foi de 10,5% para DBT e 11,8% para EBT (P<.0001). Notavelmente, os desfechos clínicos gerais foram superiores no grupo DBT (win-ratio 1.06; P<.0001), indicando que, em média, atrasar a terapia de amplo espectro foi benéfico.

Este resultado é de suma importância, pois questiona um dogma central na infectologia e na medicina hospitalar. A preocupação com o atraso na terapia eficaz, especialmente em casos de sepse ou doença grave, muitas vezes leva à prescrição de antibióticos desnecessariamente amplos, cobrindo patógenos como Pseudomonas aeruginosa, cuja incidência real é significativamente menor do que a frequência de prescrição. A evidência apresentada sugere que a cautela excessiva pode, na verdade, não trazer benefícios adicionais e, em certos contextos, pode até ser prejudicial, abrindo caminho para uma reavaliação das diretrizes de prescrição.

A importância crítica do tema: Reavaliando a prescrição de antibióticos

A relevância deste estudo transcende a mera observação clínica; ele toca em pilares fundamentais da segurança do paciente e da saúde pública. A superutilização de antibióticos de amplo espectro é um dos principais impulsionadores da resistência antimicrobiana, uma das maiores ameaças à saúde global na atualidade. O tema é crucial por várias razões:

Primeiramente, ele desafia um dogma clínico profundamente enraizado: a ideia de que a cobertura antibiótica empírica deve ser sempre a mais ampla possível para evitar desfechos negativos. Essa crença, frequentemente ensinada na formação médica, leva à prescrição de antibióticos de amplo espectro para mais da metade dos pacientes hospitalizados, muitas vezes antes mesmo dos resultados das culturas. O estudo demonstra que essa prática pode não ser apenas desnecessária, mas potencialmente prejudicial, ao expor pacientes a riscos de eventos adversos sem um benefício clínico correspondente.

Em segundo lugar, as implicações para os programas de stewardship de antimicrobianos são vastas. Tais programas visam otimizar o uso de antibióticos para tratar infecções de forma eficaz, proteger os pacientes de danos desnecessários e combater a disseminação de microrganismos multirresistentes. As descobertas deste estudo fornecem uma base sólida para que os programas de   stewardship orientem os médicos a iniciar terapias empíricas de espectro mais estreito, reservando os antibióticos de amplo espectro apenas para quando forem estritamente necessários, com base em evidências e, idealmente, em diagnósticos rápidos. Isso pode levar a uma redução significativa no uso desnecessário de antibióticos, um objetivo central do stewardship.

Por fim, a análise de subgrupos do estudo oferece nuances cruciais. Para condições comuns como infecção do trato urinário (ITU) e pneumonia, o atraso na terapia de amplo espectro foi associado a melhores desfechos clínicos. Isso sugere que, para muitos pacientes com essas condições, os antibióticos de amplo espectro podem ser desnecessários, e abordagens menos agressivas são preferíveis, especialmente considerando que muitas dessas condições podem ter causas não infecciosas ou ser bacteriúrias assintomáticas.

Em contraste, para pacientes com choque séptico ou doença crítica, as vantagens de atrasar a terapia de amplo espectro desaparecem, reforçando que, em casos de infecção grave, a terapia oportuna e eficaz continua sendo vital. Essa distinção é fundamental para refinar as estratégias de prescrição, equilibrando a necessidade de tratamento urgente em casos graves com a prudência no uso de antibióticos em situações menos críticas.

O conhecimento prévio: Uma crença questionada

Antes da publicação deste estudo, o cenário da prescrição de antibióticos empíricos era caracterizado por uma tensão entre a necessidade de tratamento rápido e eficaz e a crescente preocupação com a resistência antimicrobiana.

Era amplamente aceito que iniciar antibióticos eficazes precocemente no curso de uma infecção bacteriana poderia melhorar os desfechos de saúde. Estudos anteriores, especialmente em infecções graves como sepse, haviam demonstrado uma associação entre o início empírico de terapia antibiótica apropriada e a redução da mortalidade. Essa evidência solidificou a “regra cardinal” de que a cobertura antibiótica empírica deveria ser suficientemente ampla para cobrir os patógenos prováveis, levando os clínicos a frequentemente optarem por antibióticos de amplo espectro para Gram-negativos, como piperacilina/tazobactam ou cefepime, mesmo na ausência de fatores de risco para resistência. A preocupação com a sepse, a gravidade da doença, a complexidade médica ou a incerteza diagnóstica frequentemente impulsionava o uso de antibióticos de amplo espectro.

No entanto, paralelamente a essa prática, havia um reconhecimento crescente do superuso de antibióticos empíricos de amplo espectro. Estratégias de tratamento agressivas, que envolviam a iniciação imediata de antibióticos, já haviam sido associadas a danos. Por outro lado, estratégias que preconizavam aguardar os resultados das culturas para iniciar a terapia mostravam potencial para melhorar o uso de antibióticos e, em alguns casos, até a mortalidade. A relação entre a adequação dos antibióticos empíricos e o desfecho clínico, mesmo em infecções da corrente sanguínea por Gram-negativos, não era considerada direta.

Apesar dessas observações, uma lacuna significativa no conhecimento era a ausência de ensaios randomizados que avaliassem o efeito da seleção de antibióticos empíricos Gram-negativos de amplo versus estreito espectro nos desfechos clínicos em uma ampla população de pacientes que recebiam terapia empírica. Este estudo preenche essa lacuna com uma análise observacional em larga escala, fornecendo evidências robustas que desafiam as práticas estabelecidas.

Metodologia de estudo: Uma abordagem robusta e abrangente

O estudo empregou um desenho de coorte retrospectivo observacional, utilizando dados de 928 hospitais dos EUA, um universo que representa aproximadamente 25% dos hospitais do país. A abrangência da fonte de dados (PINC-AI, um repositório de dados de todos os pagadores) permitiu uma análise em larga escala, envolvendo 746.880 encontros de pacientes internados em 2019. Por não incluir informações de saúde protegidas, o estudo foi considerado isento de revisão pelo Comitê de Revisão Institucional da Faculdade de Medicina da Universidade de Maryland.

A metodologia foi meticulosa na classificação dos antibióticos Gram-negativos, categorizando-os em “espectro limitado”, “estreito espectro”, “amplo espectro” e “muito amplo espectro”, adaptando convenções e literatura prévia para simplificar as comparações. Por exemplo, piperacilina/tazobactam e cefepime foram classificados como “amplo espectro”, enquanto ceftriaxona foi considerada de “estreito espectro”.

A coorte do estudo foi cuidadosamente definida para incluir pacientes que receberam terapia empírica (iniciada nos dias 0-2 de internação) com um antibiótico Gram-negativo de espectro estreito ou amplo, e que subsequentemente receberam terapia pós-empírica (administrada a partir do dia 3) com um antibiótico Gram-negativo de amplo espectro. Essa definição permitiu a comparação entre a Terapia de Amplo Espectro Precoce (EBT) – onde o antibiótico de amplo espectro foi o tratamento empírico inicial – e a Terapia de Amplo Espectro Atrasada (DBT) – onde a terapia inicial de espectro estreito foi escalonada para amplo espectro. Pacientes com terapia empírica de espectro muito limitado ou muito amplo, ou aqueles admitidos de hospitais de cuidados paliativos, foram excluídos para focar na intenção curativa e na comparabilidade dos grupos. A ausência de dados de cultura na definição da terapia pós-empírica reflete a prática do mundo real e aumenta a generalização dos achados para a vasta população de pacientes que recebem antibióticos empíricos sem confirmação microbiológica.

Para avaliar os desfechos clínicos, os pesquisadores empregaram o Desirability of Outcome Ranking (DOOR), uma metodologia que considera tanto os benefícios quanto os potenciais danos das estratégias de tratamento. O DOOR hierarquiza os desfechos do melhor para o pior, incluindo mortalidade intra-hospitalar, readmissão em 30 dias e eventos adversos a medicamentos (como lesão renal aguda, erupções cutâneas e infecção por Clostridioides difficile).

Para mitigar o viés de confusão por indicação, uma preocupação inerente a estudos observacionais, foi utilizada uma técnica de pareamento (matching). Cada paciente no grupo DBT foi pareado 1:1 com um paciente do grupo EBT do mesmo hospital e com o mesmo diagnóstico de admissão, utilizando um algoritmo robusto baseado no logit do escore de propensão. O modelo de regressão do escore de propensão incluiu 28 variáveis clínicas, como idade, sexo, raça, tipo de seguro, internações prévias, origem pré-hospitalar, tipo de admissão, gravidade da doença (ex: admissão em UTI, ventilação mecânica) e saúde basal (Índice de Comorbidade de Elixhauser). Para subgrupos mais homogêneos (ITU, pneumonia, choque séptico), o pareamento foi mais flexível em relação ao diagnóstico de admissão. As comparações entre os grupos pareados foram realizadas usando análises de razão de vitória ( Win Ratios), uma abordagem estatística que avalia a superioridade de um tratamento com base em desfechos hierarquizados. As análises foram conduzidas utilizando o software SAS 9.4.

Principais resultados: a evidência da prudência

Os resultados do estudo fornecem uma base sólida para questionar a abordagem tradicional da terapia antibiótica empírica. A análise da vasta coorte de 746.880 pacientes revelou que 11% receberam Terapia de Amplo Espectro Atrasada (DBT) e 89% receberam Terapia de Amplo Espectro Precoce (EBT).

Os achados mais impactantes surgem da coorte pareada, que incluiu 67.046 pacientes em cada grupo (DBT e EBT). Nesta análise, a mortalidade foi estatisticamente menor, mas sem significância estatística, no grupo DBT (8,7%) em comparação com o grupo EBT (9,5%) (P=.022). Da mesma forma, a taxa de readmissão foi significativa estatisticamente menor para DBT (10,5%) versus EBT (11,8%) (P<.0001). Embora a taxa de eventos adversos a medicamentos tenha sido ligeiramente maior no grupo DBT (8,4% vs 7,2%; P<.0001), a avaliação combinada dos desfechos através do  win-ratio demonstrou que os desfechos clínicos foram superiores após DBT em comparação com EBT (win-ratio 1.06; P<.0001). Isso significa que, em média, os pacientes que tiveram sua terapia de amplo espectro atrasada tiveram um perfil de resultados mais favorável quando comparados aos que a receberam precocemente.

A análise de subgrupos trouxe importantes distinções:

  • Infecção do trato urinário (ITU) na admissão: Para pacientes com ITU, os desfechos clínicos foram significativamente superiores após DBT (win-ratio 1.05; P=.0062). Este achado sugere que, para uma das indicações mais comuns de antibióticos, a abordagem mais conservadora é benéfica.
  • Pneumonia na admissão: Similarmente, para pacientes com pneumonia, a DBT foi associada a desfechos clínicos superiores (win-ratio 1.09; P<.0001). Isso reforça a ideia de que a prescrição de amplo espectro “por segurança” pode ser contraproducente em muitos casos.
  • Doença crítica nos primeiros 2 dias de hospitalização: Em contraste, para pacientes criticamente enfermos, os desfechos clínicos foram equivalentes entre DBT e EBT (win-ratio 1.02, não significativamente a favor de DBT; P=.33). Isso sublinha a importância de uma terapia rápida e eficaz em situações de maior gravidade, onde o benefício de uma cobertura mais ampla pode se equilibrar com os riscos do uso excessivo.
  • Não críticos nos primeiros 2 dias de hospitalização: Para pacientes não criticamente enfermos, os desfechos clínicos foram superiores após DBT (win-ratio 1.06; P<.0001).
  • Choque séptico na admissão: Para pacientes com choque séptico, os desfechos foram equivalentes (win-ratio 1.02, não significativamente a favor de EBT; P=.35). Este resultado é crucial, pois indica que, embora a máxima de “tempo é cérebro” para sepse continue válida, a amplitude inicial da terapia pode não ser o fator determinante de desfecho, desde que a terapia seja apropriada.

Em suma, os dados revelam que, para a maioria dos pacientes que eventualmente necessitam de antibióticos de amplo espectro, uma abordagem inicial mais restrita, com escalonamento posterior, pode levar a melhores desfechos clínicos, desafiando a prática comum e abrindo caminho para uma prescrição mais racional.

Conclusões dos autores: uma mudança de paradigma necessária

As conclusões dos autores são claras e impactantes, apontando para uma necessária mudança de paradigma na prescrição de antibióticos empíricos para gram-negativos.

A principal conclusão é que, em uma grande amostra de pacientes internados adultos que, em última instância, necessitaram de terapia antibiótica de amplo espectro, o atraso na iniciação de um antibiótico de amplo espectro não foi associado a piores desfechos clínicos. Pelo contrário, em muitos casos, os desfechos foram superiores. Este achado desafia a crença profundamente enraizada de que é mais seguro errar para o lado de uma terapia antibiótica empírica excessivamente ampla.

Os autores enfatizam que os desfechos clínicos não são piores quando a cobertura antibiótica empírica para Gram-negativos é inicialmente inadequada e precisa ser escalonada. Essa observação é particularmente relevante para as indicações mais comuns de terapia antibiótica em hospitais, como pneumonia e infecção do trato urinário. Nesses cenários, o tratamento atrasado com terapia de amplo espectro para Gram-negativos foi associado a  melhores desfechos clínicos. Uma explicação plausível, como sugerido pelos autores, é que muitos pacientes tratados para essas condições podem não necessitar de antibioticoterapia, seja por se tratar de uma doença viral, uma causa não infecciosa dos sintomas, ou, no caso de ITU, uma bacteriúria assintomática. Nessas situações, abordagens menos agressivas na seleção de antibióticos são, sem dúvida, preferíveis.

Contudo, os autores também delineiam uma distinção crucial: para pacientes com choque séptico ou doença crítica, as potenciais vantagens associadas ao atraso da terapia antibiótica de amplo espectro desaparecem. Isso não diminui a importância da terapia antibiótica oportuna em infecções graves, mas sugere que, para esses pacientes selecionados que necessitam de antibióticos eficazes com urgência, o dano potencial do uso excessivo de antibióticos é equilibrado pelo benefício de uma cobertura adequada e imediata.

As implicações para os programas de gerenciamento de antibióticos (Antimicrobial Stewardship) são diretas e profundas. O estudo apoia a segurança de abordagens que orientam os médicos a iniciar antibióticos empíricos de espectro mais estreito e a escalar para terapia de espectro mais amplo apenas se necessário. Os autores suspeitam que uma proporção substancial dos pacientes na coorte poderia ter sido iniciada com segurança em terapia empírica de espectro estreito, o que representa uma oportunidade significativa para a otimização do uso de antimicrobianos.

Finalmente, o estudo preserva um papel vital para os diagnósticos rápidos na prática clínica. Testes moleculares rápidos, capazes de identificar espécies e padrões de suscetibilidade de patógenos a partir de hemoculturas, permitem escalonamentos apropriados de antibióticos empíricos de espectro estreito para antibióticos definitivos de amplo espectro. Essa capacidade de refinar a terapia com base em dados em tempo real permite que os pacientes colham os benefícios da terapia de amplo espectro quando indicada, sem serem expostos aos danos de antibióticos empíricos de amplo espectro inapropriados.

Fatores limitantes e possíveis confundidores: reconhecendo as fronteiras do conhecimento

Como todo estudo científico, a pesquisa apresenta fatores limitantes e possíveis confundidores que devem ser considerados na interpretação de seus resultados.

A principal limitação reside no fato de ser uma análise retrospectiva de dados do mundo real. Embora o estudo tenha empregado técnicas robustas de pareamento para mitigar o viés de seleção – garantindo que os pacientes nos grupos de Terapia de Amplo Espectro Atrasada (DBT) e Terapia de Amplo Espectro Precoce (EBT) fossem o mais comparáveis possível em relação a 28 variáveis clínicas e diagnósticos de admissão – ainda existe a possibilidade de confundimento residual por variáveis não medidas ou omitidas. A decisão clínica de iniciar um antibiótico de espectro estreito ou amplo é complexa e pode ser influenciada por fatores sutis que não são capturados em dados administrativos, como a percepção subjetiva do clínico sobre a gravidade da doença ou a probabilidade de resistência.

Outra limitação importante é a ausência de dados de cultura para avaliar a adequação da terapia com antibióticos contra Gram-negativos. Por um lado, isso reflete a realidade da prática clínica, onde a maioria dos pacientes recebe antibioticoterapia sem confirmação microbiológica, tornando os resultados mais generalizáveis para essa população. Antibióticos de amplo espectro são frequentemente prescritos para inflamação inespecífica ou instabilidade clínica na ausência de evidência clara de infecção bacteriana. No entanto, a desvantagem é que, sem dados de cultura, não é possível determinar se a terapia de amplo espectro foi realmente “apropriada” para um patógeno específico. Os resultados poderiam ter sido diferentes se a análise tivesse sido estratificada por patógeno, pois antibióticos empíricos de amplo espectro podem, de fato, melhorar os desfechos para certas bactérias, como Pseudomonas aeruginosa e Acinetobacter baumannii, que exigem cobertura específica.

Além disso, o estudo não pode ser extrapolado para situações em que os pacientes iniciam antibióticos de amplo espectro e são subsequentemente desescalonados para antibióticos de espectro estreito. A pesquisa focou apenas na escalada da terapia, não na desescalada, que é outra estratégia fundamental do stewardship de antimicrobianos.

Por fim, embora a metodologia Desirability of Outcome Ranking (DOOR) seja uma ferramenta valiosa que considera múltiplos desfechos (benefícios e danos), a granularidade do DOOR criado no estudo pode ter sido limitada para detectar todas as diferenças importantes nos desfechos clínicos. Por exemplo, a cura clínica, que é frequentemente avaliada em ensaios clínicos por meio de revisão de prontuários e critérios de adjudicação, não foi um componente direto do DOOR neste estudo.

Essas limitações não invalidam os achados, mas fornecem um contexto essencial para sua interpretação e para a formulação de futuras pesquisas. Elas ressaltam a complexidade da pesquisa em saúde no mundo real e a necessidade de abordagens multifacetadas para compreender plenamente o impacto das intervenções clínicas.

Recomendações dos autores: um guia para o futuro da prescrição

Com base em seus achados, os autores oferecem recomendações claras que visam aprimorar a prática clínica e fortalecer os programas de gerenciamento de antimicrobianos.

A principal recomendação é que a crença comum de que é sempre mais seguro iniciar uma terapia antibiótica empírica de espectro excessivamente amplo deve ser questionada. Os resultados do estudo apoiam a segurança de abordagens que orientam os médicos a iniciar antibióticos empíricos de espectro mais estreito e a escalar para terapia de espectro mais amplo apenas se necessário. Esta abordagem mais ponderada pode reduzir o uso desnecessário de antibióticos, o que é preferível quando nenhum antibiótico deveria ter sido prescrito em primeiro lugar (por exemplo, em casos de doenças virais ou bacteriúria assintomática).

Para pacientes com choque séptico ou doença crítica, as vantagens potenciais associadas ao atraso da terapia antibiótica de amplo espectro desaparecem. Isso sugere que, para infecções graves, a terapia antibiótica oportuna é mais relevante, e qualquer dano potencial do uso excessivo de antibióticos é equilibrado pelo benefício para esses pacientes selecionados que necessitam de antibióticos eficazes com urgência. Portanto, a recomendação é manter a agilidade na prescrição para pacientes gravemente enfermos, mas com uma reflexão crítica sobre a amplitude inicial para os demais.

Além disso, o estudo preserva um papel crucial para os diagnósticos rápidos na atenção clínica. Testes moleculares rápidos, que podem identificar espécies e padrões de suscetibilidade de patógenos isolados de hemoculturas, permitem escaladas apropriadas de antibióticos empíricos de espectro estreito para antibióticos definitivos de amplo espectro. Essa tecnologia permite que os pacientes se beneficiem da terapia antibiótica de amplo espectro quando clinicamente justificado, sem serem expostos aos danos de antibióticos empíricos de espectro inapropriadamente amplo. A integração de diagnósticos rápidos nos fluxos de trabalho clínicos é, portanto, uma recomendação implícita para otimizar a prescrição.

Em síntese, os autores recomendam uma abordagem mais ponderada e baseada em evidências para a prescrição de antibióticos empíricos. Isso implica favorecer o espectro estreito inicialmente para a maioria dos pacientes, reservando o amplo espectro para casos em que a gravidade da doença o justifique, sempre com o auxílio de diagnósticos rápidos para guiar e refinar a terapia.

Comentários adicionais: Navegando na complexidade da prescrição antimicrobiana

Este estudo representa um marco significativo na discussão sobre a otimização da prescrição de antimicrobianos, oferecendo uma perspectiva que desafia o status quo e pavimenta o caminho para uma prática mais consciente e baseada em evidências. A principal implicação é a necessidade de um mindset renovado na medicina hospitalar, onde a prudência e a especificidade podem ser tão, ou mais, eficazes do que a amplitude inicial.

A constatação de que atrasar a terapia de amplo espectro pode levar a melhores desfechos para a maioria dos pacientes não criticamente enfermos é um divisor de águas. Isso sugere que a “cultura do medo” de não cobrir adequadamente um patógeno, que muitas vezes impulsiona a prescrição excessiva, precisa ser reavaliada. A sobrecarga de antibióticos desnecessários não apenas aumenta o risco de eventos adversos para o paciente individual (como lesão renal aguda, erupções cutâneas e infecção por Clostridioides difficile ), mas também contribui diretamente para a pressão seletiva que favorece o surgimento e a disseminação de microrganismos multirresistentes. A resistência antimicrobiana é uma ameaça global, e cada prescrição desnecessária é um passo na direção errada.

A diferenciação clara entre pacientes criticamente enfermos (choque séptico, doença crítica) e não criticamente enfermos é crucial. Para os primeiros, a agilidade na administração de antibióticos apropriados permanece um pilar do tratamento, refletindo a urgência de condições com alta morbimortalidade. No entanto, mesmo nesses casos, a reflexão sobre a necessidade de uma cobertura “maximalista” desde o início pode ser aprimorada com o uso de diagnósticos rápidos, que permitem uma desescalada ou otimização mais precoce da terapia.

O papel do Antimicrobial Stewardship (AS) é fundamental neste novo cenário. Os programas de AS, que já buscam otimizar o uso de antibióticos através de auditorias, feedback e restrições, agora têm um suporte robusto para promover uma abordagem mais conservadora. A implementação de diretrizes que incentivem o uso de antibióticos de espectro estreito como primeira linha, com critérios claros para escalonamento, pode ser uma estratégia eficaz. Isso requer educação contínua dos profissionais de saúde e um sistema de apoio robusto que inclua farmacêuticos clínicos e microbiologistas.

A integração de diagnósticos rápidos é o elo que permite a transição segura para essa nova abordagem. Ao fornecer informações precisas sobre o patógeno e seu perfil de suscetibilidade em tempo hábil, esses testes permitem que os médicos tomem decisões informadas, escalando a terapia apenas quando a evidência microbiológica o justifica. Isso minimiza a exposição desnecessária a antibióticos de amplo espectro, ao mesmo tempo em que garante que a terapia direcionada seja iniciada prontamente quando necessário. O investimento em infraestrutura laboratorial e na capacitação para o uso desses diagnósticos é, portanto, uma prioridade estratégica para as instituições de saúde.

É imperativo que as políticas de saúde e os sistemas de acreditação hospitalar incorporem esses achados. Incentivar a redução do uso de antibióticos de amplo espectro para pacientes não criticamente enfermos, sem comprometer a segurança, pode se tornar um indicador de qualidade. A educação médica, tanto na graduação quanto na pós-graduação, deve ser atualizada para refletir essa nova compreensão, promovendo uma cultura de prescrição mais racional e menos baseada no “erro por excesso”.

Finalmente, este estudo nos convida a uma reflexão mais ampla sobre a medicina baseada em evidências. Ele demonstra que mesmo as práticas mais arraigadas devem ser constantemente reavaliadas à luz de novas evidências. A curiosidade científica e a disposição para desafiar o status quo são essenciais para o avanço da saúde e para a proteção da eficácia dos antimicrobianos para as gerações futuras.

Referências bibliográficas:

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Artigos do site www.ccih.med.br

  • Resumo: Este artigo avalia a segurança da redução da duração da antibioticoterapia empírica em casos de suspeita de sepse neonatal precoce com hemocultura negativa. Conclui que a redução para 24 horas, em vez de 48 horas, diminuiu com segurança a exposição a antibióticos em bebês prematuros onde a sepse foi descartada, sem aumento de sepse subsequente.
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  • Resumo: A página parece ser um ponto de contato ou uma introdução a um tema mais amplo sobre otimização da prescrição de antibióticos, sem um resumo detalhado do artigo específico.

Artigos da Bireme e outras plataformas

  • Título: Fatores associados à resistência clínica antimicrobiana na China: uma análise nacional
  • Referência: XIONG, Haiyan et al. Factors associated with clinical antimicrobial resistance in China: a nationwide analysis. Infectious Diseases of Poverty, v. 14, n. 1, p. 25, 2025. DOI: 10.1186/s40249-025-01289-6. Disponível em: https://doi.org/10.1186/s40249-025-01289-6.
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  • Referência: KAISER, Thais Dias Lemos et al. Resistência antimicrobiana em pacientes hospitalizados com COVID-19. Epidemiologia e Saúde, v. 2, n. 1, p. 1-10, 2023. DOI: https://doi.org/10.17058/reci.v14i1.18336
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  • Referência: PEDROSO, Charlise Fortunato et al. Avaliação de programas de controle de infecções relacionadas à assistência à saúde: perspectiva crítica da RDC N°48/2000 da ANVISA. Rev. Eletr. Enferm., v. 25, p. 74024, 2023. DOI: https://doi.org/10.5216/ree.v25.74024.
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  • KU, Tsun Sheng N. et al. Improving antimicrobial use through better diagnosis: The relationship between diagnostic stewardship and antimicrobial stewardship. Infection Control & Hospital Epidemiology, v. 44, n. 12, p. 1901-1908, 2023. DOI: https://doi.org/10.1017/ice.2023.156.
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  • TALBOT, Thomas R. et al. SHEA/APIC/IDSA/PIDS multisociety position paper: Raising the bar: necessary resources and structure for effective healthcare facility infection prevention and control programs. Infection Control & Hospital Epidemiology, [s. l.], p. 1–19, 28 abr. 2025. DOI: https://doi.org/10.1017/ice.2025.73.
  • Resumo: Este documento de posicionamento conjunto de múltiplas sociedades aborda a necessidade crítica de fortalecer os programas de Prevenção e Controle de Infecções (PCI) em instalações de saúde. Defende a elevação das expectativas para os programas de PCI, tornando-os partes fundamentais e influentes da estrutura operacional da instalação, com recursos adequados e liderança especializada, priorizando todos os potenciais danos infecciosos.

Título: Bacteriologia de biofilmes de tubos endotraqueais e resistência a antibióticos: uma revisão sistemática

  • MISHRA, S. K. et al. Bacteriology of Endotracheal Tube Biofilms and Antibiotic Resistance: A Systematic Review. Journal of Hospital Infection, v. 147, p. 146-157, 2024. DOI: 10.1016/j.jhin.2024.03.004. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.jhin.2024.03.004.
  • Resumo: biofilmes por bactérias isoladas de tubos endotraqueais e suas associações com a resistência antimicrobiana. Conclui que Pseudomonas spp. e Acinetobacter spp. são frequentemente isolados em infecções associadas a biofilmes, e que a formação de biofilme contribui significativamente para a resistência.

 

Autor da sinopse comentada:

Karine Oliveira:

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https://www.instagram.com/karine_oliveiraoficial/

 

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