As doenças diarreicas agudas (DDA) correspondem a um grupo de doenças infecciosas gastrointestinais caracterizadas por uma síndrome, na qual ocorre a diminuição da consistência das fezes, o aumento do número de evacuações (mínimo de 3 episódios em 24 horas) e, em alguns casos, há presença de muco e sangue (disenteria). As demais manifestações clínicas incluem dor abdominal, febre, náusea e/ou vômito. A depender do agente causador da doença e de características individuais dos pacientes, as DDA podem evoluir clinicamente para quadros de desidratação que variam de leve a grave, podendo ocorrer óbito por choque hipovolêmico e/ou hipopotassemia.
Os agentes etiológicos das DDA de origem infecciosa são bactérias e suas toxinas, vírus, parasitas intestinais oportunistas. Esses patógenos geram a gastroenterite – inflamação do trato gastrointestinal – que afeta o estômago e o intestino. Alguns agentes também podem causar a síndrome hemolítico-urêmica (SHU), como a Escherichia coli produtoras de toxina Shiga, Shiguella dysenteriae tipo, Campylobacter, aeromonas e enterovírus. O modo de transmissão é fecal-oral, tendo como principais fontes água e alimentos contaminados. A infecção também pode ser causada pelo contato com objetos contaminados, contato com outras pessoas, por meio de mãos contaminadas, e contato de pessoas com animais. A infecção é autolimitada e o período de incubação é específico para cada agente etiológico, podendo variar de 24 horas até 14 dias. O período de transmissibilidade também é específico para cada agente etiológico.
Indivíduos de todas as idades são suscetíveis a desenvolverem DDA infecciosas, no entanto a gastroenterite, ou seja, a manifestação clínica é mais prevalente em crianças menores de 5 anos. Recém-nascidos normalmente têm infecção mais leve ou assintomática, provavelmente devido à amamentação e aos anticorpos maternos transferidos pela mãe, contudo a imunidade adquirida após a infecção ou a vacinação (contra rotavírus e cólera, por exemplo) não é definitiva. Crianças, idosos e imunodeprimidos são mais vulneráveis, sendo mais propensos a desenvolverem a desidratação.
Diagnóstico
O diagnóstico clínico é feito através da anamnese. O diagnóstico das causas etiológicas das DDA é laboratorial, por meio de exames parasitológicos, da cultura de bactérias e de pesquisa de vírus em amostras de fezes. O diagnóstico laboratorial é importante para que seja conhecido o padrão dos agentes etiológicos patogênicos circulantes, sendo imprescindível na vigência de surtos para orientar as medidas de prevenção e controle. Nesse caso, recomenda-se a pesquisa laboratorial para todos os possíveis agentes etiológicos patogênicos. Na ocorrência de surto de DDA, recomenda-se a coleta de amostras de fezes para pesquisa de bactérias, vírus e outros parasitos intestinais oportunistas. As fezes devem ser coletadas antes da administração de antibióticos.
Tratamento
O tratamento das doenças diarreicas agudas se fundamenta na prevenção e na rápida correção da desidratação por meio da ingestão de líquidos e solução de sais de reidratação oral (SRO) ou fluidos endovenosos, dependendo do estado de hidratação e da gravidade do caso. Por isso, apenas após a avaliação clínica do paciente, o tratamento adequado deve ser estabelecido, conforme os planos A, B e C (descritos no manual da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente | SVSA). Para indicar o tratamento é imprescindível a avaliação clínica do paciente e do seu estado de hidratação.
Link: Manejo do paciente com diarreia: avaliação do estado de hidratação do paciente https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/svsa/doencas-diarreicas-agudas/manejo-do-paciente-com-diarreia-avaliacao-do-estado-de-hidratacao-do-paciente-arquivo-com-marcas-de-corte/view
Surtos
Considera-se surto quando há dois ou mais casos da doença relacionados entre si; é necessário que os casos tenham compartilhado o mesmo espaço ou a mesma refeição no mesmo período de tempo. Casos de uma doença, em uma determinada área e período de tempo, mas que não tenham uma fonte ou causa conhecida são considerados “agregados de casos”.
Os surtos de DDA, em virtude das muitas possíveis etiologias e fontes de transmissão, são comumente chamados de surtos de Doenças de Transmissão Hídrica e Alimentar (DTHA). Existem mais de 250 tipos de DTHA no mundo, e a maioria delas é infecções causadas por bactérias e suas toxinas, vírus e parasitos intestinais oportunistas, além das intoxicações exógenas causadas pelo consumo de substâncias químicas presentes nos alimentos. Para as DTHA consideradas raras, como botulismo e cólera, a ocorrência de apenas um caso é considerada surto.
A investigação de surtos de DTHA é importante para a saúde pública, pois permite a identificação da fonte de contaminação, implementação de ações de controle e prevenção do surgimento de novos casos e/ou surtos. Os surtos de doença diarreica são agravos de notificação imediata (em até 24 horas) e são considerados Eventos de Saúde Pública (ESP). Um ESP é definido com uma situação que pode constituir potencial ameaça à saúde pública, como a ocorrência de surto ou epidemia, doença ou agravo de causa desconhecida, alteração no padrão clínico-epidemiológico das doenças conhecidas, considerando o potencial de disseminação, a magnitude, a gravidade, a severidade, a transcendência e a vulnerabilidade, bem como epizootias ou agravos decorrentes de desastres ou acidentes.
Saiba mais sobre o Norovírus e o surto na Baixada Paulista
Os norovírus são vírus altamente contagiosos da família Caliciviridae, causadores de gastroenterite aguda. Eles apresentam grande diversidade genética e antigênica, dividindo-se em cinco genogrupos (GI, GII, GIV, GVIII e GIX) e 35 genótipos, com múltiplas variantes circulando simultaneamente. Essa variabilidade faz com que a infecção por um tipo de norovírus não proteja contra outros tipos. Embora seja possível desenvolver proteção contra variantes específicas, ainda não se sabe exatamente quanto tempo essa imunidade dura. Esse fato, somado à alta transmissibilidade, explica por que os norovírus são os principais agentes de gastroenterite aguda epidêmica e endêmica em todo o mundo, afetando pessoas de todas as idades, tanto em países desenvolvidos quanto em desenvolvimento.
Os norovírus são transmitidos principalmente pela via fecal-oral, podendo ocorrer por ingestão de água ou alimentos contaminados, contato direto com pessoas infectadas ou toque em superfícies contaminadas. Sua alta capacidade infecciosa e resistência em ambientes externos facilitam a disseminação, frequentemente levando a grandes surtos de gastroenterite aguda em diversos ambientes fechados ou semifechados, como instituições de longa permanência, escolas, hospitais, especialmente em locais com condições precárias de higiene e saneamento.
Os sintomas da infecção por norovírus geralmente aparecem entre 12 e 48 horas após a exposição e incluem diarreia, vômitos, dor abdominal, dores musculares, cansaço, dor de cabeça e, em alguns casos, febre. Embora o quadro seja autolimitado, durando em média três dias, o vírus pode continuar sendo eliminado nas fezes por alguns dias após o fim dos sintomas, mantendo o risco de transmissão. Complicações são raras, mas a desidratação é uma preocupação, principalmente em crianças, idosos e pessoas com condições de saúde pré-existentes.
Nesta semana, o Instituto Adolfo Lutz confirmou a presença de norovírus dos genogrupos 1 e 2 em amostras de fezes coletadas na Baixada Santista, região litorânea de São Paulo, após um surto de virose que afetou centenas de pessoas. Apesar de ainda não haver uma causa definitiva para o surto, há relatos de vazamentos de esgoto em cidades da região, como Guarujá, onde o extravasamento de esgoto clandestino no mar foi apontado como uma possível fonte de contaminação. Moradores de outras cidades, como Santos e Praia Grande, também relataram sintomas semelhantes, sugerindo a disseminação do vírus por água ou alimentos contaminados.
Vigilância Epidemiológica:
A vigilância epidemiológica de Doenças de Transmissão Hídrica e Alimentar (VE-DTHA) é realizada a partir do monitoramento de casos e surtos e compreende a VE de algumas doenças de notificação compulsória como cólera, botulismo, febre tifoide, toxoplasmose adquirida na gestação e congênita, surtos DTHA e das de notificação em unidades sentinelas, como doenças diarreicas agudas, rotavírus e síndrome hemolítico-urêmica. Além dessas, há alguns ESPs que se constituem ameaça à saúde pública e, devido à transmissibilidade por água/alimentos, à presença de sinais e sintomas gastrointestinais ou à transversalidade das ações de prevenção e controle, estão diretamente relacionadas com a VE-DTHA e devem ser monitorados em conjunto, como é o caso daqueles relacionados à doença de Chagas (transmissão oral), brucelose e intoxicação exógena.
A vigilância epidemiológica das doenças diarreicas agudas (VE-DDA) faz parte da vigilância epidemiológica das doenças de transmissão hídrica e alimentar (VE-DTHA) e é composta também pela monitorização das doenças diarreicas agudas (MDDA), regulamentada pela Portaria de Consolidação n.º 5, de 28 de setembro de 2017, a qual permite monitorar somente a ocorrência dos casos notificados em unidades de saúde eleitas sentinelas pela vigilância epidemiológica das Secretarias Municipais de Saúde, com o intuito principal de acompanhar o comportamento e a detecção de alterações no padrão local das doenças diarreicas agudas de forma a identificar, em tempo oportuno, surtos e epidemias.
Notificação de DDA e Surtos
Os casos isolados de DDA devem ser notificados quando atendidos em unidades sentinelas para DDA. A notificação dos casos deve ser realizada nos impressos I e II da MDDA, que são enviados à Secretaria Municipal de Saúde para consolidação e registro dos casos no Sistema Informatizado de Vigilância Epidemiológica das DDA (Sivep_DDA) na semana epidemiológica correspondente à data do início dos sinais e dos sintomas.
Para fins de notificação na MDDA, considera-se caso novo quando, após a normalização da função intestinal por um período de 48 horas, o paciente apresentar novo quadro de DDA. No entanto, há infecções por alguns agentes etiológicos que produzem um quadro diarreico intermitente e até mesmo mais duradouro que 14 dias. Assim, é preciso estar atento para que não ocorram duplicidades no registro de casos.
Os surtos de DDA, em virtude das muitas possíveis etiologias e fontes de transmissão, são também chamados de surtos de DTHA. Os surtos de DTHA que configurem ESP que constitua ameaça à saúde pública devem ser notificados imediatamente ao Ministério da Saúde, conforme disposto na Portaria de Consolidação GM/MS n.º 4, de 28 de setembro de 2017. Diante da suspeita de um surto de DTHA, as unidades de saúde têm a obrigação de comunicar a Secretaria Municipal de Saúde e realizar a notificação no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), utilizando a Ficha de Investigação de Surto-DTA. Para surtos com quadro de “síndrome diarreica aguda”, deve-se usar o código CID-10 A08c. Já para surtos com quadros específicos, é necessário empregar os códigos da CID-10 correspondentes, como cólera (A00.9), botulismo (A051), febre tifoide (A01.0), rotavírus (A08.0), intoxicação exógena (T65.9), entre outros, conforme habilitados no Sinan.
Preciso notificar norovírus?
Embora casos individuais de norovírus não sejam de notificação compulsória no Brasil, surtos de DTHA, como os causados por norovírus, são de notificação obrigatória. Isso permite que as autoridades de saúde implementem medidas rápidas de controle e prevenção, como investigação da fonte de contaminação, monitoramento de casos e orientação à população.
O surto na Baixada Paulista reforça a importância de investimentos em saneamento básico e educação em saúde, além da necessidade de vigilância epidemiológica constante para identificar e conter rapidamente situações como essa. A combinação de medidas preventivas individuais e coletivas é essencial para reduzir o impacto de surtos de norovírus e proteger a saúde pública.
Medidas de Prevenção e Controle
As medidas de prevenção e controle abaixo visam minimizar o risco de ocorrência de casos de DDA:
Qualidade da Água:
Fornecimento de água potável em quantidade e qualidade adequadas.
Orientação sobre desinfecção domiciliar da água na ausência de rede pública.
Evitar banhos de mar em áreas classificadas como impróprias pela Cetesb e após chuvas, devido ao risco de contaminação por esgoto.
Consumir de água filtrada e evitar água de procedência desconhecida.
Destino Adequado do Lixo e Dejetos:
Coleta e tratamento adequado de dejetos e resíduos sólidos.
Orientação sobre o destino correto de dejetos e resíduos sólidos.
Controle de Vetores:
Implementação de medidas para controle de vetores que podem transmitir doenças.
Higiene Pessoal:
Promoção de hábitos de higiene pessoal, com ênfase na lavagem correta das mãos antes de preparar alimentos, ao se alimentar, após usar o banheiro e ao chegar de locais públicos.
Campanhas de educação em saúde para reforçar a importância da higiene.
Manejo Adequado dos Alimentos:
Cuidados durante o preparo e armazenamento de alimentos, evitando alimentos mal-cozidos e mantendo-os bem refrigerados.
Educação sobre práticas seguras de manipulação de alimentos.
Evitar o consumo de gelo, raspadinhas, sacolés, sucos e água mineral de origem desconhecida.
Observar a higiene em estabelecimentos comerciais e levar lanches corretamente armazenados durante passeios ao ar livre.
Saneamento Básico:
Garantia de condições adequadas de saneamento básico.
Orientação específica para locais de uso coletivo que podem apresentar riscos maximizados quando as condições sanitárias não são adequadas (escolas, creches, hospitais, etc.).
Aleitamento Materno:
Incentivo à prorrogação do tempo de aleitamento materno para proteção contra diarreias em crianças.
Vacinação:
Vacinação como medida preventiva contra doenças diarreicas agudas graves, como as causadas por rotavírus.
A vacinação contra cólera é recomendada pela OMS para utilização somente em locais endêmicos, durante surtos de cólera e em crises humanitárias com risco de cólera, sempre em conjunto com outras estratégias de prevenção e controle.
Intensificar a hidratação em caso de diarreia e buscar atendimento médico se necessário, como parte das campanhas de educação em saúde.
Essas medidas visam reduzir a incidência de doenças diarreicas agudas (DDA) e melhorar as condições de saúde da população.
Fontes:
Ficha de Notificação de Surto – DTA: https://portalsinan.saude.gov.br/images/documentos/Agravos/DTA/Surto_DTA_v5.pdf
https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/t/toxoplasmose/arquivos/boletim-epidemiologico-svs-31-paginas-22-30.pdf
https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/d/dda
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_vigilancia_saude_5ed_rev_atual.pdf
https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/svsa/doencas-transmitidas-por-alimentos-dta/manual_dtha_2021_web.pdf/view
https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/svsa/doencas-diarreicas-agudas/manejo-do-paciente-com-diarreia-avaliacao-do-estado-de-hidratacao-do-paciente-arquivo-com-marcas-de-corte/view
https://www.mdpi.com/2076-0817/10/12/1641
Elaborado por:
Beatriz Grion
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https://www.instagram.com/beatrizgrion/
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