Entenda o que a ANVISA realmente mudou em 2025 na prevenção da infecção primária da corrente sanguínea associada a cateteres. Análise crítica, científica e prática para gestores e profissionais que não se contentam com protocolos superficiais.
1. Introdução
IPCS, cateter e segurança do paciente: estamos diante de um avanço técnico ou de mais um protocolo formal que não muda a prática real?
A ANVISA, em parceria com a EBSERH, lançou um novo modelo de protocolo para prevenção da infecção primária da corrente sanguínea associada a dispositivos de acesso vascular. O documento promete padronização, redução de eventos adversos e maior controle das taxas de infecção hospitalar.
Mas sejamos honestos: protocolos não reduzem IPCS sozinhos. Quem reduz é adesão real, cultura assistencial e decisão clínica baseada em evidência — e não apenas checklists preenchidos para atender auditorias. Este artigo analisa, com olhar técnico e sem reverência cega, se a nova diretriz representa um salto real em segurança do paciente ou mais um instrumento normativo condenado à rotina burocrática.
2. Objetivo e Responsáveis
Objetivo do Guia:
O documento intitulado “Protocolo de Prevenção de Infecção Primária da Corrente Sanguínea Associada a Dispositivos de Acesso Vasculares” tem como objetivo principal padronizar as diretrizes mínimas para inserção, manutenção e monitoramento de cateteres vasculares centrais (DAVC) e periféricos (DAVP). O foco é a prevenção e controle das Infecções Primárias de Corrente Sanguínea (IPCS), visando reduzir a morbidade, mortalidade e custos hospitalares, além de orientar a elaboração de protocolos institucionais locais.
Entidades Responsáveis:
Trata-se de uma coautoria governamental entre:
- ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), especificamente a Gerência de Vigilância e Monitoramento em Serviços de Saúde (GVIMS/GGTES/DIRE3).
- EBSERH (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares), responsável pela gestão dos hospitais universitários federais.
2. Metodologia da Revisão Bibliográfica (Análise Crítica)
Descrição no Guia:
O documento se apresenta como um “Modelo de Protocolo” baseado em evidências.
- Fontes de Pesquisa: O guia cita diretrizes nacionais e internacionais consolidadas, como o “Caderno 4” da ANVISA (2024), diretrizes da SHEA/IDSA (Buetti et al., 2022), APIC (2015) e estudos observacionais relevantes (Maki, 1992; Safdar & Maki, 2004).
- Critérios de Seleção/Classificação: O guia não descreve um método de revisão sistemática primária (não informa estratégias de busca, bases de dados varridas ou fluxograma de seleção de artigos PRISMA). Ele é um documento de implementação que compila evidências de outras diretrizes já validadas.
- Quantificação de Artigos: O guia não informa quantos artigos foram encontrados ou selecionados.
- Patrocínio e Conflito de Interesse: Não há declaração explícita de conflitos de interesse no texto, nem menção a patrocínio privado. Entende-se como produção técnica pública (governamental).
- Sistema de Evidência: Embora não detalhe a extração de dados, o guia utiliza o sistema GRADE (Grading of Recommendations Assessment, Development and Evaluation) para classificar a força das recomendações (I, II, III) especificamente no Apêndice B (Resumo da periodicidade de troca), citando a “Canadian Task Force on Preventive Health Care”.
Avaliação da Qualidade (GRADE / PRISMA / HICPAC):
- PRISMA (Revisão Sistemática): O guia reprovaria como uma revisão sistemática, pois não relata a metodologia de busca e seleção. Ele funciona como um guia de prática clínica/protocolo operacional.
- GRADE: Aplica o conceito (Alta/Moderada/Baixa) apenas em tabelas resumidas, mas não apresenta as tabelas de evidência que justificam cada escolha ao longo do texto corrido.
- HICPAC (CDC): O formato se assemelha às diretrizes do HICPAC, focando em categorizar práticas como “fazer” ou “não fazer”, sendo altamente aplicável para o controle de infecção hospitalar (CCIH).
3. Recomendações Detalhadas e Fundamento
O protocolo divide as recomendações em Medidas Gerais, Específicas para Cateter Venoso Periférico (CIVP), Arterial e Central (DAVC/PICC/Port/Tunelizado).
Principais Recomendações e Fundamentos:
- Higiene das Mãos (HM):
- Recomendação: Obrigatória nos 5 momentos, preferencialmente com preparação alcoólica, exceto se sujidade visível ou C. difficile.
- Fundamento: Interrupção da cadeia de transmissão (evidência clássica nível I).
- Preparo da Pele (Antissepsia):
- Recomendação: Clorexidina alcoólica a 2% é a primeira escolha. Fricção mecânica (“vai e vem”) por 30 segundos (2 min em femoral). Esperar secar espontaneamente.
- Fundamento: Superioridade da clorexidina sobre o PVPI na redução de colonização (Buetti et al., 2022).
- Neonatologia: Cuidados específicos com clorexidina em < 28 semanas ou < 1000g (risco de queimadura química), recomendando remoção com água estéril após o procedimento.
- Seleção do Sítio de Inserção (DAVC):
- Recomendação: Preferir Veia Subclávia em adultos. Evitar femoral (risco de infecção e trombose). Em crianças, femoral pode ser considerada se tórax contraindicado.
- Fundamento: Evidência robusta de menor taxa de infecção na subclávia comparada à jugular/femoral.
- Barreira Máxima Estéril:
- Recomendação: Gorro, máscara, avental estéril longo, luvas estéreis e campo ampliado (corpo inteiro) para inserção de CVC/PICC/Arterial (femoral/axilar).
- Fundamento: Redução drástica de contaminação no momento da inserção.
- Coberturas (Curativos):
- Recomendação: Transparente estéril (troca a cada 7 dias) ou Gaze estéril (troca a cada 48h ou se sujo/sangrando).
- Destaque: Considerar cobertura impregnada com clorexidina para pacientes > 2 meses com DAVC, especialmente oncológicos ou UTIs com taxas altas apesar de outras medidas.
- Manutenção e Troca (Hubs e Sistemas):
- Recomendação: Desinfecção ativa das conexões (scrub the hub) por 5 segundos (álcool 70% ou clorexidina alcoólica). Troca de equipos contínuos a cada 96h; intermitentes a cada 24h; propofol a cada 6-12h.
- Inovação: Não trocar cateteres central por tempo programado. Remover se desnecessário (avaliação diária).
4. Pontos em Aberto e Comparação (Análise Crítica)
O que o guia foi o primeiro a dizer (ou enfatizou):
- Operacionalização: O grande diferencial não é a “ciência nova”, mas a entrega de ferramentas prontas: Checklists de inserção (Apêndice C e D), Checklist de manutenção (Apêndice E) e Fichas de Indicadores (Apêndice G a J). Isso facilita a adesão em hospitais com menos estrutura de CCIH.
- Clareza em Neonatologia: Traz tabelas específicas para antissepsia em prematuros, um tema frequentemente cinzento em protocolos gerais.
O que ele deixou de informar (Lacunas/Divergências):
- Tampas com Antissépticos (Passive Disinfection Caps): O guia menciona brevemente “tampa protetora com antisséptico” no item 7.5 “Outras medidas”, mas não detalha quando usar ou custo-efetividade, ponto fortemente debatido nas diretrizes internacionais atuais (SHEA 2022 recomenda fortemente).
- Sutura vs. Fixação Adesiva: O guia recomenda “considerar dispositivos de estabilização sem sutura”, mas não proíbe a sutura, que é desencorajada em guias mais modernos (INS 2021) devido ao biofilme nos fios e risco de acidentes.
- Lock Therapy (Antimicrobiana): Menciona superficialmente, sem protocolos de diluição ou indicação precisa para pacientes com falência de acesso (apenas cita citrato para hemodiálise).
Comparação com ANVISA (Caderno 4 – 2024) e SHEA/IDSA (2022):
- Convergência: Alinha-se totalmente com a ANVISA 2024 na preferência pela clorexidina e uso de ultrassom (recomendação forte no guia).
- Divergência de Ênfase: Enquanto a SHEA/IDSA foca muito na cultura de segurança e estratégias comportamentais complexas, este protocolo foca no checklist técnico.
- Troca de Equipo: Mantém o padrão de 96h, alinhado com CDC, mas conservador comparado a estudos que testam 7 dias (168h) em situações específicas (ainda não validado globalmente).
5. Síntese das Recomendações Finais e Pesquisas Futuras
Recomendações Finais para o Gestor:
- Adote os Checklists: Utilize os apêndices C, D e E imediatamente. A documentação da adesão é tão vital quanto a técnica.
- Incorpore o Ultrassom: O guia coloca a inserção guiada por ultrassom como preferencial. Hospitais devem investir em aparelhos e treinamento.
- Clorexidina é Lei: A padronização da clorexidina alcoólica >0,5% (ideal 2%) para inserção e manutenção é inegociável, salvo alergia.
Campos para Pesquisa Futura (Brasil):
- Custo-efetividade de tampas desinfetantes passivas (“capping”) no cenário SUS.
- Impacto da retirada da sutura (fixação adesiva exclusiva) nas taxas de IPCS e deslocamento de cateter em UTIs brasileiras.
- Validação de bundles simplificados para hospitais de pequeno porte.
6. Conclusão
O novo protocolo da ANVISA representa um movimento importante ao fornecer ferramentas práticas, checklists e diretrizes claras para prevenção da IPCS. Isso é mérito. No entanto, permanece um ponto crítico: a distância entre protocolo e prática.
Sem cultura de segurança, sem monitoramento ativo, sem treinamento contínuo e sem protagonismo das equipes assistenciais, qualquer diretriz — por mais bem escrita que seja — vira peça decorativa de gaveta. A prevenção da IPCS exige mais que norma: exige atitude, vigilância e liderança clínica. E isso não se impõe por decreto.
7. Referências Bibliográficas e Leitura Recomendada
Referências do Documento Analisado (ABNT):
- AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (Brasil). Nota Técnica GVIMS/GGTES/DIRE3/ANVISA nº 03/2025: Critérios Diagnósticos das infecções relacionadas à assistência à saúde de notificação nacional obrigatória. Brasília: Anvisa, 2025. Disponível em: Protocolo1PrevenodeIPCSFINAL.
- BUETTI, Niccolò et al. Strategies to prevent central line-associated bloodstream infections in acute-care hospitals: 2022 Update. Infection Control & Hospital Epidemiology, v. 43, n. 5, p. 553-569, 2022. DOI: 10.1017/ice.2022.87.
Artigos Relacionados (Pesquisa Externa):
- MAKI, Dennis G. et al. The risk of bloodstream infection in adults with different intravascular devices: a systematic review of 200 published prospective studies. Mayo Clinic Proceedings, v. 81, n. 9, p. 1159-1171, 2006. (Clássico base).
- WORLD HEALTH ORGANIZATION. Guidelines on the prevention of bloodstream infections and other infections associated with the use of intravascular catheters. Geneva: WHO, 2024. (Lançamento recente global).
Artigos do Portal CCIH MED (Recomendados):
- Título: O que a SHEA está atualizando nas estratégias para prevenir infecção primária da corrente sanguínea em pacientes com cateter central?
- Título: Prevenção de infecções associadas a dispositivos — cuidados com cateteres venosos.
Autor:
Antonio Tadeu Fernandes:
Médico pela FMUSP com residência em Moléstias Infecciosas no HCFMUSP e mestrado em Medicina Preventiva na FMUSP.
Ex-presidente da APECIH (fundador) e da ABIH.
Autor do livro: “Infecção Hospitalar e suas Interfaces na Área da Saúde” (Prêmio Jabuti como melhor publicação em Ciências Neturais e Saúde).
CEO do Instituto CCIH+
https://www.linkedin.com/in/mba-gest%C3%A3o-ccih-a-tadeu-fernandes-11275529/
https://www.instagram.com/tadeuccih/
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