Segurança do paciente nunca foi tão urgente. O novo guia da Anvisa, lançado em 2025, redefine como hospitais, clínicas e serviços de saúde devem estruturar seus Núcleos de Segurança do Paciente (NSP) e elaborar seus Planos de Segurança do Paciente (PSP). Mais do que um documento regulatório, ele representa um roteiro estratégico para gestores e controladores de infecção hospitalar que buscam alinhar conformidade, qualidade e cultura justa de segurança. Neste artigo, analisamos criticamente seus pontos fortes, lacunas e implicações práticas, revelando o que a regulamentação não mostra, mas que pode transformar (ou travar) sua instituição.
📌 FAQ sobre Núcleo de Segurança do Paciente (NSP) / Plano de Segurança do Paciente (PSP)
- O que é o Núcleo de Segurança do Paciente (NSP)?
É a instância obrigatória (RDC 36/2013) criada em serviços de saúde para implementar ações de segurança do paciente.
🔗 Anvisa – RDC 36/2013 - Para que serve o Plano de Segurança do Paciente (PSP)?
Define riscos, ações e protocolos de prevenção, monitoramento e mitigação de incidentes.
🔗 Documento de referência – PNSP - Quais profissionais devem compor o NSP?
Equipe multiprofissional: médico, enfermeiro, farmacêutico, além de representantes da CCIH e gerência de risco.
🔗 Caderno 6 – Implantação do NSP (Anvisa) - Qual o papel da CCIH dentro do NSP?
Integrar vigilância de IRAS, protocolos de prevenção e monitoramento de surtos com as ações do núcleo.
🔗 CCIH.med.br – IRAS x Infecção Hospitalar - Quais são os protocolos obrigatórios de segurança do paciente?
Higienização das mãos, identificação correta, cirurgia segura, segurança medicamentosa, prevenção de quedas e úlceras por pressão.
🔗 Protocolos Anvisa/MS - Como garantir apoio da alta gestão ao NSP?
Formalização por portaria interna, provisão de recursos e participação ativa da direção em decisões estratégicas.
🔗 Artigo Redalyc – Estrutura dos NSP - Quais ferramentas práticas podem ser usadas pelo NSP?
5W2H, Análise de Causa Raiz, FMEA, Protocolo de Londres, BowTie e Modelo do Queijo Suíço.
🔗 OMS – Guia de ferramentas - O que é cultura justa em segurança do paciente?
Modelo que substitui punição por aprendizado, incentivando notificação de falhas e análise sistêmica.
🔗 OMS – Cultura de Segurança - Como lidar com resistência de profissionais à adesão de protocolos?
Educação contínua, feedback construtivo, envolvimento nas decisões e liderança engajada.
🔗 CCIH.med.br – Barreiras para prevenção de IRAS - Quais são os maiores desafios para efetividade do NSP?
Recursos limitados, falta de integração entre setores, cultura punitiva e ausência de indicadores consistentes.
🔗 Anvisa – Caderno 6 - O que são “never events”?
Eventos adversos graves que nunca deveriam ocorrer, como cirurgia em paciente errado ou transfusão incompatível.
🔗 OMS – Never Events - Como funciona a notificação de incidentes?
Deve ser feita via Notivisa (incidentes assistenciais) e VigiMed (erros de medicação).
🔗 Anvisa – Notivisa - Como engajar pacientes e familiares?
Envolver em decisões, dar orientações claras, estimular relato de falhas e oferecer canais de comunicação seguros.
🔗 OMS – Engajamento do Paciente - Quais indicadores básicos acompanhar no PSP?
Taxa de IRAS, quedas, lesões por pressão, adesão à higienização das mãos, notificações de EA.
🔗 Nota Técnica Anvisa 03/2025 - Qual o papel do farmacêutico no NSP?
Garantir uso seguro de medicamentos, revisar prescrições, monitorar eventos adversos e educar equipe multiprofissional.
🔗 Revista AJIC – Safe Medication Practices - E o do enfermeiro?
Liderança em protocolos de prevenção, monitoramento direto no leito, notificação e treinamento de equipe.
🔗 J Hosp Infect – Nurse perspectives - Como garantir sustentabilidade do NSP?
Institucionalizar práticas, incluir segurança no orçamento, alinhar com acreditações (ONA, JCI, DNV).
🔗 ONA – Manual de Acreditação - Qual a relação entre NSP e acreditações hospitalares?
O NSP é requisito fundamental para certificações ONA Nível 3, JCI e DNV.
🔗 ONA – Critérios de Acreditação - Quais metas internacionais de segurança podem ser alinhadas ao NSP?
Seis metas da OMS: identificação correta, comunicação eficaz, medicamentos de risco, cirurgia segura, infecção associada, prevenção de quedas.
🔗 OMS – Patient Safety Goals - Quais são os ganhos institucionais de um NSP eficiente?
Redução de eventos adversos, maior confiança dos pacientes, melhoria de indicadores assistenciais, sustentabilidade financeira e reputação institucional.
🔗 CCIH.med.br – Governança Clínica.
Introdução: O Mandato da Qualidade e Segurança no Cenário da Saúde
A segurança do paciente transcende a mera conformidade regulatória, emergindo como um imperativo ético e uma prioridade estratégica no sistema de saúde global. No Brasil, esse compromisso se consolidou a partir de iniciativas globais, como a Aliança Mundial para a Segurança do Paciente da Organização Mundial da Saúde (OMS), da qual o país é signatário (Ref 1). O movimento foi formalmente institucionalizado com a criação do Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP) pela Portaria GM n° 529, de 1° de abril de 2013, e sua regulamentação mais detalhada pela Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) n° 36, de 25 de julho de 2013, que tornou obrigatória a implementação de ações de segurança em serviços de saúde.1
O custo humano e econômico dos eventos adversos (EA) na saúde é alarmante. Estimativas globais apontam que dezenas de milhões de pessoas sofrem danos anualmente, com um impacto devastador na morbidade e mortalidade. Nos Estados Unidos, o Instituto de Medicina (IOM) indica que erros associados à assistência à saúde podem causar entre 44 mil e 98 mil disfunções anualmente em hospitais. No contexto brasileiro, a incidência de EA é igualmente preocupante, com um estudo de 2009 demonstrando uma ocorrência de 7,6%, dos quais 66% foram classificados como evitáveis.3 Tais dados reforçam a urgência de uma abordagem sistêmica e proativa para a gestão de riscos.
A mais recente contribuição da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) para este debate é o guia “Implantação do Núcleo de Segurança do Paciente em Serviços de Saúde” (3ª edição, 2025). Este documento, embora classificado como um “instrumento regulatório não normativo” 3, atua como um roteiro de melhores práticas, expressando o entendimento da agência sobre como os serviços de saúde devem proceder. A sua natureza didática e orientadora complementa a obrigatoriedade da RDC n° 36/2013, oferecendo um manual detalhado que capacita gestores e profissionais. O guia se torna o ponto de partida para a nossa análise, que busca não apenas descrever seu conteúdo, mas também contextualizá-lo, criticá-lo e enriquecê-lo com uma revisão da literatura científica, especialmente para o público de controle de infecção hospitalar.
O Núcleo de Segurança do Paciente (NSP) e o Plano de Segurança do Paciente (PSP): O Eixo da Governança Clínica
A espinha dorsal da gestão da segurança do paciente em qualquer instituição de saúde é a dupla composta pelo Núcleo de Segurança do Paciente (NSP) e o Plano de Segurança do Paciente (PSP). O guia da ANVISA de 2025 descreve detalhadamente a estrutura, o propósito e as atividades essenciais para a sua implementação, reforçando seu papel como o epicentro da governança clínica.
O NSP: Um catalisador da mudança
O NSP é definido como “a instância do serviço de saúde criada para promover e apoiar a implementação de ações voltadas à segurança do paciente”.3 Sua criação é compulsória para todos os serviços de saúde, sejam eles públicos, privados, filantrópicos, civis ou militares, incluindo aqueles com foco em ensino e pesquisa.3 A única ressalva da norma exclui consultórios individualizados, laboratórios clínicos e serviços móveis e de atenção domiciliar.1 O documento da ANVISA enfatiza que a composição do NSP deve ser multiprofissional, incluindo minimamente médico, enfermeiro e farmacêutico, e com representatividade de outras comissões e setores cruciais, como a Comissão de Controle de Infecção Hospitalar (CCIH) e a Gerência de Risco. A instituição pode optar por um NSP único para várias unidades ambulatoriais, o que reflete uma flexibilidade regulatória que se adapta às diferentes realidades e complexidades dos serviços.3
O sucesso do NSP está diretamente ligado ao apoio e ao comprometimento da alta direção. O guia sugere que a formalização do núcleo por meio de um documento interno formal (como uma Portaria) e a garantia de recursos humanos, financeiros e materiais são passos essenciais. O coordenador do NSP, por sua vez, deve ser um profissional com experiência em qualidade e segurança, com autonomia para atuar nas instâncias deliberativas da instituição.3 O guia não especifica fatores limitantes, mas a análise crítica da sua estrutura e recomendações sugere que a falta de comprometimento da liderança e a escassez de recursos podem ser os maiores entraves à sua plena funcionalidade.
O PSP: O planejamento que transforma intenções em ações
O Plano de Segurança do Paciente (PSP) é o documento que tangibiliza a visão e as prioridades da instituição em relação à segurança do paciente.3 Ele não é um mero documento cartorial, mas um roteiro estratégico que deve detalhar as ações de gestão de risco, a implementação de protocolos de segurança e a promoção de uma cultura organizacional que prioriza a segurança. O guia da ANVISA estabelece uma série de conteúdos mínimos que o PSP deve cobrir, desde a identificação do paciente e a higiene das mãos até a prevenção de quedas e infecções relacionadas à assistência à saúde (IRAS).3
Para a sua elaboração, o guia sugere uma abordagem estruturada, dividida em quatro etapas cíclicas: Planejamento, Execução, Avaliação e Revisão. A ferramenta 5W2H (What, Why, Where, Who, When, How, How much) é recomendada como uma metodologia prática para a formulação de ações claras e mensuráveis, transformando objetivos estratégicos em planos operacionais detalhados.3 A Tabela 1 exemplifica como essa ferramenta pode ser aplicada na prática para estruturar as ações do PSP, garantindo que cada iniciativa tenha responsáveis, prazos e custos definidos, superando a imprecisão de um plano genérico.
Tabela 1. Elaboração do Plano de Segurança do Paciente, com base na metodologia 5W2H
Questões | Plano de Segurança do Paciente |
O quê? | O que será feito? Quais as ações a serem desenvolvidas? |
Quem? | Quem será o responsável pela implantação e condução das ações? |
Por quê? | Por que será feito? Qual a justificativa e qual o resultado esperado? |
Onde? | Onde será feito? Onde a ação será desenvolvida? Qual a abrangência? |
Quando? | Quando será feito? Qual o prazo, as datas para início e término? |
Como? | Como será feito? Como a ação será implementada? Qual a metodologia a ser utilizada? |
Quanto? | Quanto custará? Análise do investimento a ser realizado (não se restringe a investimento financeiro). |
(Fonte: Adaptado do Guia ANVISA, 2025 3)
Uma Cultura Justa de Segurança: O Alicerce para a Prevenção de Danos
A cultura de segurança é a pedra angular sobre a qual se apoiam o NSP e o PSP. O guia da ANVISA a define como um “conjunto de valores, atitudes, competências e comportamentos” que substitui a punição pelo aprendizado com as falhas.1 O documento sugere que o NSP promova essa cultura através da liderança, do trabalho em equipe, da identificação de riscos e da capacitação contínua.3
O desafio psicossocial e o paradoxo do comportamento
Apesar da definição aspiracional do guia, a realidade do ambiente de saúde apresenta complexos fatores psicossociais que atuam como barreiras para a sua plena implementação. Pesquisas na área de infecções hospitalares revelam que o comportamento dos profissionais, como a adesão à higienização das mãos, é influenciado não apenas pelo conhecimento técnico, mas pelo clima de trabalho e por um “comportamento de rebanho”.4 A equipe de enfermagem, por exemplo, pode ser menos propensa a criticar colegas, mesmo em situações de risco, se o ambiente não for propício à discussão aberta e justa, especialmente em unidades com alta rotatividade de pessoal.4
Este cenário sublinha um aspecto crítico: o guia da ANVISA, em sua abordagem, foca nas estruturas formais (NSP, PSP) e na gestão de riscos, mas não se aprofunda nos “fatores limitantes e confundidores” que podem minar o processo na prática.3 Um estudo de revisão sobre a prevenção de infecções hospitalares destaca que o objetivo de “zero infecções” é uma expectativa irreal e que a busca por metas inatingíveis pode levar ao “gaming the system” — ou seja, manipular dados para aparentar resultados, o que leva a falsas conclusões sobre a preventabilidade e pode causar danos.5 Manter a alta liderança engajada na prevenção de infecções é um desafio constante devido a prioridades concorrentes.5
Promovendo a cultura por meio de sistemas
Para contrariar esses desafios, o guia da ANVISA endossa uma abordagem sistêmica, como o Modelo do Queijo Suíço de James Reason.3 Este modelo ilustra que a maioria dos incidentes não é causada por uma única falha individual, mas por um alinhamento de falhas em diversas camadas do sistema (as “fatias do queijo”). O perigo se transforma em evento adverso apenas quando os “buracos” nessas barreiras se alinham. A função do NSP, portanto, é fortalecer essas barreiras, garantindo a existência de protocolos, profissionais capacitados, ferramentas e um ambiente seguro.3
Outra abordagem sistêmica complementar, proposta pela OMS, é a metodologia P-T-F-A-O-M, que atua nas seis categorias interconectadas que influenciam a segurança: Pessoas, Tarefas, Ferramentas e Tecnologia, Ambiente de Trabalho, Organização e Medidas. Essa visão holística reforça que a segurança do paciente é o resultado da interação complexa entre todos os componentes do sistema de saúde.6 A falha de um elemento pode comprometer o sistema inteiro, independentemente do comprometimento individual dos profissionais.
Notificação e Investigação: Aprendizagem Contínua e Gestão Proativa de Riscos
A notificação de incidentes é um componente crucial para a gestão de riscos e a melhoria contínua da qualidade assistencial. O guia da ANVISA de 2025 torna obrigatória a notificação de todos os incidentes relacionados à assistência à saúde, incluindo eventos adversos (EA) e never events (eventos que nunca deveriam ocorrer), ao Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS).3 Essa notificação deve ser realizada através dos sistemas Notivisa (módulo Assistência à Saúde) e VigiMed (para erros de medicação), permitindo a coleta de dados agregados que subsidiam políticas públicas de saúde e o aprendizado sistêmico.3
A notificação, no entanto, enfrenta um paradoxo prático. Enquanto o objetivo é promover o aprendizado e a melhoria, um artigo de revisão do PubMed sugere que a busca por uma vigilância “altamente sensível” pode levar a um “excesso de diagnósticos,” questionando a verdadeira incidência de eventos.5 Se os profissionais não confiam na confidencialidade do sistema ou temem a punição, a subnotificação pode ser uma realidade. O guia da ANVISA, ao adotar a metodologia de investigação do Protocolo de Londres, orienta o NSP a focar no “motivo de sua ocorrência” e não em “quem” estava envolvido, promovendo uma cultura de transparência e não punição.3
O processo de investigação de incidentes é detalhado em sete etapas, começando pela identificação e decisão de investigar, passando pela coleta de dados (revisão de prontuários, entrevistas), determinação da ordem cronológica e identificação de fatores contribuintes, até a elaboração de recomendações e um plano de ação.3 A transparência é fundamental, e o guia recomenda que o NSP compartilhe os resultados da análise com a direção e os profissionais de saúde, reforçando o ciclo de feedback e aprendizado. A gestão de riscos deve ser proativa, utilizando ferramentas prospectivas como a Análise dos Modos de Falha (FMEA) para prever e mitigar falhas antes que elas ocorram.3
Revisão Bibliográfica Integrada: A Segurança do Paciente na Vanguarda da Ciência Médica
A aplicação do guia da ANVISA se fortalece quando contextualizada com a mais recente literatura científica. A revisão bibliográfica revela nuances e desafios que complementam as diretrizes regulatórias, especialmente na intersecção com o controle de infecção.
A Preventabilidade das IRAS: Uma Análise Realista
Apesar da alta incidência de Infecções Relacionadas à Assistência à Saúde (IRAS), a visão de “tolerância zero” é alvo de debate. O artigo de revisão do PubMed 5 conclui que o objetivo de “zero infecções hospitalares” (HAIs) leva a “expectativas irreais” e que a ciência atual da prevenção de infecções é imprecisa. O artigo sugere que, talvez, 55% a 70% das HAIs sejam potencialmente preveníveis. A análise aprofundada desta questão revela um conceito de “lei dos rendimentos decrescentes,” onde a proporção de infecções evitáveis pode diminuir ao longo do tempo à medida que a segurança do paciente melhora, tornando os ganhos incrementais cada vez mais difíceis de serem alcançados.5
O Panorama Global e a Posição do Brasil
O Relatório Global sobre Segurança do Paciente 2024 da OMS 7 oferece um panorama que contextualiza o esforço brasileiro. O documento revela uma baixa adesão global às estratégias de segurança, com apenas 29% dos 108 países-membros tendo um plano nacional de ação e 38% com metas para a redução de IRAS. O Brasil, como um dos países que contribuíram com dados, demonstra a importância da sua iniciativa regulatória e ressalta a necessidade de fortalecer a implementação de sistemas de notificação de never events, atualmente implementados em apenas 38% dos países.7
A Criança e o Neonatologista como Foco da Segurança
A Organização Mundial da Saúde (OMS) tem se concentrado na vulnerabilidade de crianças e neonatos. A campanha de 2025 para o Dia Mundial da Segurança do Paciente, com o tema “Cuidado seguro para cada recém-nascido e cada criança,” destaca a susceptibilidade dessa população a eventos adversos, incluindo erros de medicação, falhas de diagnóstico e, criticamente, IRAS.6 A campanha enfatiza a importância de engajar pais e familiares, aprimorar a segurança da medicação com o uso de balanças e calculadoras eletrônicas, e fortalecer a prevenção de IRAS, que são uma das principais causas de morbidade e mortalidade nesse grupo.6 A metodologia P-T-F-A-O-M, já citada, é a base para essa abordagem holística.
A Formação dos Profissionais: Uma Lacuna Crítica
Uma revisão integrativa da literatura brasileira revela que o ensino de segurança do paciente e controle de infecção nas graduações em saúde é, em geral, “descoordenado, esporádico e focado principalmente na higiene das mãos”.8 Essa lacuna na formação de base pode ser um fator limitante fundamental para a implementação efetiva dos protocolos de segurança, pois os profissionais chegam ao ambiente clínico sem uma compreensão sistêmica e coordenada dos temas. O guia da ANVISA, portanto, atua como uma força de mitigação para essa deficiência, mas enfrenta um desafio educacional de base que transcende a regulamentação.
A Evolução do Conceito de Infecção Relacionada à Assistência à Saúde
O guia da ANVISA utiliza o termo Infecção Relacionada à Assistência à Saúde (IRAS), uma evolução do antigo conceito de “infecção hospitalar”.9 A mudança de terminologia reflete a abrangência dos locais de assistência (não apenas hospitais, mas também clínicas e cuidados domiciliares) e a evolução da vigilância epidemiológica. Uma Nota Técnica recente da ANVISA, de 2025, atualiza e padroniza os critérios diagnósticos para as IRAS de notificação obrigatória em nível nacional, como infecções de corrente sanguínea e pneumonia associada à ventilação mecânica.10 Essa constante atualização normativa evidencia a natureza dinâmica da vigilância em saúde e a necessidade de os profissionais se manterem constantemente atualizados.
A Segurança do Paciente como uma Jornada de Excelência
A implantação do NSP e o desenvolvimento do PSP, conforme o guia da ANVISA de 2025, representam mais do que um ato de conformidade burocrática; eles são o coração da governança clínica e um roteiro claro para a excelência assistencial. A análise aprofundada, no entanto, revela que a eficácia desse roteiro depende da capacidade das organizações de saúde de gerir fatores humanos e culturais que não são explicitamente abordados no guia.
A literatura científica sublinha um ciclo de feedback negativo: a falta de formação curricular coordenada em segurança (Ref 11) pode levar a uma compreensão superficial do tema. Isso, por sua vez, contribui para um ambiente onde a vigilância pode ser falha, gerando percepções distorcidas (Ref 10), o que desengaja a alta liderança e perpetua o problema. O guia da ANVISA atua como uma força de quebra desse ciclo, oferecendo a estrutura formal para a melhoria.
A verdadeira segurança do paciente não se atinge com a simples assinatura de um documento, mas com o compromisso contínuo da liderança e a criação de uma cultura de aprendizado e transparência. O NSP deve ser o catalisador dessa transformação, utilizando o PSP como seu mapa. A jornada é desafiadora, e a meta de “zero eventos adversos” pode ser irreal, mas o esforço para aprimorar a assistência é um objetivo ético e moralmente imperativo. A notificação, quando realizada em um ambiente de confiança, e a investigação, focada no sistema e não na culpa, são as ferramentas que alimentam o aprendizado. Profissionais de saúde dedicados ao controle de infecção, em particular, têm um papel central nessa missão, pois estão na linha de frente da batalha contra as IRAS, uma das ameaças mais persistentes à segurança do paciente. O guia da ANVISA, com a devida análise crítica e a contextualização na literatura, oferece um caminho sólido para que possamos não apenas cumprir as exigências, mas verdadeiramente transformar a assistência e, em última análise, salvar vidas.
Conclusão
O guia da Anvisa de 2025 sobre a implantação do NSP e PSP é mais do que uma exigência: é uma oportunidade de repensar a governança clínica e alinhar práticas a padrões internacionais de segurança. Contudo, seu sucesso depende do engajamento da liderança, da superação de barreiras culturais e da criação de uma cultura justa de aprendizado. Para gestores, controladores de infecção e equipes multiprofissionais, o desafio não está apenas em “cumprir a norma”, mas em transformá-la em ação concreta que reduza eventos adversos, fortaleça a confiança dos profissionais e, sobretudo, proteja vidas.
Referências Bibliográficas
(Ref 1) KOHN, L. Y.; CORRIGAN, J. M.; DONALDSON, M. S. To err is human: Building a Safer Health System. Washington DC: National Academy Press, 2000.
(Ref 2) JAMES, J. T. A new, evidence-base estimate of patient harms associated with hospital care. J Patient Saf., v. 9, n. 3, p. 122–8, 2013. DOI: https://doi.org/10.1097/pts.0b013e3182914aae. Breve resumo: O artigo estima o número de danos evitáveis associados ao cuidado hospitalar nos EUA, fornecendo uma base de evidências para o impacto de erros médicos.
(Ref 3) BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Implantação do Núcleo de Segurança do Paciente em Serviços de Saúde. Brasília, DF: ANVISA, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/centraisdeconteudo/publicacoes/servicosdesaude/manuais/copy_of_infecc_qualidade_cad_6_completo_web_20250915_final_v2.pdf. Breve resumo: Guia detalhado que fornece recomendações para a criação, operação e atividades do Núcleo de Segurança do Paciente (NSP) e a elaboração do Plano de Segurança do Paciente (PSP) em serviços de saúde.
(Ref 4) BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução da Diretoria Colegiada – RDC nº 36, de 25 de julho de 2013. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 jul. 2013. Disponível em:(https://anvisalegis.datalegis.net/action/ActionDatalegis.php?acao=abrirTextoAto&link=S&tipo=RDC&numeroAto=00000036&seqAto=000&valorAno=2013&orgao=RDC/DC/ANVISA/MS&cod_modulo=310&cod_menu=9431). Breve resumo: Resolução que institui ações para a segurança do paciente em serviços de saúde, tornando obrigatória a criação do Núcleo de Segurança do Paciente.
(Ref 5) WORLD HEALTH ORGANIZATION. Global Patient Report 2024. Geneva: WHO, 2024. Disponível em: https://www.ccih.med.br/relatorio-global-seguranca-do-paciente-2024/. Breve resumo: Relatório que oferece uma visão global sobre a situação da segurança do paciente, com dados de 108 países e indicadores-chave para os objetivos estratégicos da OMS.
(Ref 6) OLIVEIRA, C. D. et al. Início Estratégias da OMS 2025 para reduzir riscos em pediatria e neonatologia. CCIH.med.br, 8 set. 2025. Disponível em: https://www.ccih.med.br/inicio-estrategias-da-oms-2025-para-reduzir-riscos-em-pediatria-e-neonatologia/. Breve resumo: Artigo que descreve as cinco metas estratégicas da campanha de 2025 da OMS, focadas em mitigar danos evitáveis em recém-nascidos e crianças.
(Ref 7) CARVALHO, P. Qual a diferença entre IRAS e Infecção Hospitalar? CCIH.med.br, [s.d.]. Disponível em: https://www.ccih.med.br/qual-e-a-diferenca-entre-iras-e-infeccao-hospitalar/. Breve resumo: Explica a evolução do conceito de “infecção hospitalar” para o termo mais abrangente e moderno “Infecção Relacionada à Assistência à Saúde” (IRAS).
(Ref 8) BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Nota Técnica GVIMS/GGTES/DIRE3/ANVISA Nº 03/2025. Brasília, DF: ANVISA, 2025. Disponível em:(https://www.ccih.med.br/wp-content/uploads/2025/01/Nota-Tecnica-03_2025_Criterios-diagnosticos-de-IRAS-2025-02.01.2025-FINAL.pdf). Breve resumo: Documento que padroniza os critérios diagnósticos para as IRAS de notificação nacional obrigatória para 2025.
(Ref 9) KRAUSE, S. R. et al. Hospital infection prevention: A patient safety review. J Patient Saf., v. 15, n. 4, p. e97-e101, 2019. DOI: https://doi.org/10.1097/PTS.0000000000000572. Breve resumo: Artigo de revisão que discute a preventabilidade das infecções hospitalares, alertando para a irrealidade da meta de “zero infecções” e os desafios para manter a liderança engajada.
(Ref 10) OLSSON, M. et al. Patient safety in the hospital setting: A qualitative study on nurses’ perspectives on infection prevention and control. J Hosp Infect., v. 132, p. 130–136, 2025. DOI: https://doi.org/10.1016/j.jhin.2024.11.011. Breve resumo: Estudo qualitativo que explora a perspectiva de enfermeiros sobre a prevenção de infecções, destacando a complexidade do ambiente de trabalho e o papel de fatores psicossociais.
(Ref 11) FERREIRA, D. A.; OLIVEIRA, C. D. Integração curricular do ensino de segurança do paciente e controle de infecção: revisão integrativa. Rev Bras Enferm., v. 75, n. 3, p. e20210744, 2022. DOI: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0744. Breve resumo: Uma revisão integrativa que analisa como os temas de segurança do paciente e controle de infecção são ensinados em cursos de graduação em saúde, identificando a falta de coordenação entre eles.
Sinopse realizada por:
Karine Oliveira:
https://www.linkedin.com/in/karine-oliveira-789815b4/
https://www.instagram.com/karine_oliveiraoficial/
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