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O Que os Dados Não Mostram: Lições da Pesquisa Qualitativa para a Prevenção de Infecções

As CCIH trabalham com dados, mas eles não mostram toda a história. É na profundidade da pesquisa qualitativa que surgem as percepções, experiências e insights capazes de revelar barreiras ocultas e oportunidades de melhoria. Este artigo explora como a análise de narrativas e contextos reais pode oferecer respostas que os relatórios quantitativos simplesmente não captam, fortalecendo a tomada de decisão e a eficácia das estratégias de prevenção.

A pesquisa qualitativa é crucial para compreender as barreiras, os facilitadores e a implementação prática da prevenção e controle de infecções, revelando que a cultura organizacional, as restrições de recursos e o comportamento humano são tão importantes quanto as diretrizes técnicas para alcançar um controle de infecções eficaz.

A literatura mostra que a pesquisa qualitativa revela barreiras críticas — como limitações de recursos, diretrizes ambíguas e hierarquias profissionais — assim como facilitadores, como apoio da liderança, treinamento e desenvolvimento de uma cultura forte de PCI. Esses estudos destacam que o controle efetivo de infecções não depende apenas do cumprimento técnico, mas está profundamente ligado ao contexto social, organizacional e comportamental dos ambientes de saúde. As principais conclusões desse conjunto de trabalhos enfatizam a necessidade de intervenções adaptadas, educação contínua e estratégias inclusivas que envolvam todos os atores, desde a equipe da linha de frente até pacientes e familiares.

 

1. O Papel Crítico da Investigação Qualitativa no Cenário da Prevenção e Controle de Infecções (PCI)

A Prevenção e Controle de Infecções (PCI) é uma pedra angular da segurança do paciente e da qualidade dos cuidados em saúde. Por décadas, o campo foi dominado por uma abordagem quantitativa, focada na epidemiologia, na vigilância de taxas de infecção e na avaliação da eficácia de intervenções através de ensaios clínicos randomizados. Embora essa abordagem seja indispensável para monitorar a magnitude dos problemas — o quê, o quando e o onde das infecções relacionadas à assistência à saúde (IRAS) —, ela frequentemente se mostra insuficiente para explicar o porquê e o como esses eventos ocorrem (Ref. 1). A pesquisa qualitativa emerge, portanto, não como uma alternativa, mas como uma parceira sinérgica e essencial, capaz de iluminar a complexa teia de comportamentos humanos, dinâmicas culturais e fatores sistêmicos que determinam o sucesso ou o fracasso das iniciativas de PCI.

1.1 Argumento Central: A Sinergia entre o Quantitativo e o Qualitativo

A epidemiologia quantitativa fornece o mapa das IRAS, identificando tendências, fatores de risco e a eficácia de intervenções em populações. Contudo, as taxas de infecção são, em última análise, o resultado de inúmeras interações humanas que ocorrem no nível micro da prática clínica. A PCI é, em sua essência, uma ciência social e comportamental, tanto quanto uma disciplina biomédica. As diretrizes de PCI, por mais robustas que sejam, não se implementam sozinhas; elas são interpretadas, adaptadas, e por vezes ignoradas, por profissionais de saúde que atuam em ambientes complexos, dinâmicos e frequentemente sob pressão (Ref. 4).

A pesquisa qualitativa é a metodologia por excelência para explorar essa “complexidade, contexto e nuances” da prática clínica do mundo real (Ref. 1). Enquanto um estudo quantitativo pode demonstrar que a adesão à higiene das mãos em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) é de 40%, um estudo qualitativo pode revelar as razões subjacentes a essa estatística: a localização inconveniente das pias, a cultura de urgência que desprioritiza a prática, a percepção de que o uso de luvas substitui a necessidade de higienizar as mãos, ou as hierarquias de poder que inibem um profissional júnior de lembrar um sênior sobre uma falha na prática (Ref. 5). Dessa forma, a pesquisa qualitativa preenche as lacunas deixadas pelos dados numéricos, oferecendo explicações ricas e contextualizadas que são cruciais para o desenvolvimento de intervenções eficazes.

1.2 O Problema da Lacuna “Saber-Fazer” (Knowing-Doing Gap)

Uma das questões mais persistentes em PCI é a lacuna “saber-fazer” (do inglês, knowing-doing gap): a discrepância entre o que os profissionais de saúde sabem que deveriam fazer, com base em diretrizes e evidências, e o que eles de fato fazem na sua prática diária (Ref. 2). Programas de intervenção focados exclusivamente em educação e treinamento frequentemente falham em produzir melhorias sustentáveis, precisamente porque partem do pressuposto de que o problema é uma falta de conhecimento. A pesquisa qualitativa demonstra consistentemente que as barreiras à adesão raramente residem na ignorância, mas sim em fatores contextuais complexos que moldam o comportamento no ponto de cuidado (Ref. 7).

Esses fatores podem ser organizacionais (carga de trabalho excessiva, falta de suprimentos), ambientais (design inadequado da enfermaria), culturais (normas de equipe que toleram desvios) ou sociais (hierarquias profissionais) (Ref. 4, 7). Um estudo etnográfico, por exemplo, pode observar que, embora todos os profissionais conheçam os “5 Momentos para a Higiene das Mãos” da Organização Mundial da Saúde, o fluxo de trabalho frenético e as interrupções constantes tornam a sua aplicação prática extremamente desafiadora, levando a “atalhos” que se tornam a norma (Ref. 8). Ao diagnosticar essas barreiras contextuais, a pesquisa qualitativa permite que as intervenções sejam direcionadas às verdadeiras causas do problema, em vez de simplesmente reiterar informações que os profissionais já possuem.

Isso revela uma função mais profunda da investigação qualitativa em PCI: ela atua como uma ferramenta de diagnóstico sistêmico (Ref. 3). Em vez de focar em falhas individuais, ela expõe disfunções nos fluxos de trabalho, nas estruturas de poder, no design do ambiente físico e na cultura organizacional que, coletivamente, criam as condições para o risco de infecção. O problema deixa de ser “profissionais que não cumprem as regras” e passa a ser “sistemas que dificultam ou impedem o cumprimento”. Essa mudança de perspectiva é fundamental. Ela sugere que as soluções mais potentes não são aquelas que visam corrigir o indivíduo (através de mais treinamento ou punição), mas sim aquelas que redesenham o sistema para tornar o comportamento seguro a escolha mais fácil e natural. Por exemplo, a descoberta qualitativa de que a pressão do tempo é uma barreira primária à higiene das mãos não leva à conclusão de que os enfermeiros precisam ser mais rápidos, mas sim a questionamentos sobre os níveis de pessoal, a complexidade das tarefas e a eficiência dos processos de trabalho (Ref. 7). Assim, a pesquisa qualitativa transforma a PCI de um exercício de conformidade individual para um desafio de engenharia de sistemas e mudança cultural.

2. Desvendando a Complexidade: Aplicações Metodológicas da Pesquisa Qualitativa em PCI

A força da pesquisa qualitativa reside na sua diversidade metodológica, que permite aos pesquisadores escolherem a abordagem mais adequada para responder a diferentes tipos de questões sobre PCI (Ref. 1). Cada método oferece uma lente única para observar e interpretar o mundo social do cuidado em saúde. A seguir, são detalhadas as metodologias mais proeminentes e suas aplicações específicas no campo.

2.1 Etnografia e Observação Participante

A etnografia, com seu método central de observação participante, é talvez a abordagem qualitativa mais poderosa para entender a prática de PCI no seu ambiente natural. O pesquisador se insere no cenário clínico (uma enfermaria, um centro cirúrgico, uma UTI) por um período prolongado, observando e registrando comportamentos, interações e o fluxo de trabalho como eles realmente acontecem. Essa imersão permite capturar a enorme diferença que muitas vezes existe entre o “trabalho como imaginado” (descrito nos protocolos e políticas) e o “trabalho como feito” (a realidade da prática sob pressão) (Ref. 2).

Através da observação direta, o pesquisador pode identificar práticas “não ditas”, atalhos, adaptações e as razões contextuais para o não cumprimento das diretrizes. Por exemplo, um estudo observacional pode revelar que as pias de lavagem das mãos são sistematicamente ignoradas não por negligência, mas porque estão localizadas fora do fluxo de trabalho natural dos enfermeiros, exigindo que eles se desviem de uma tarefa urgente para utilizá-las (Ref. 8). A etnografia é particularmente valiosa para expor como o ambiente físico, a organização das tarefas e as pressões de tempo interagem para criar barreiras invisíveis à prática segura.

2.2 Entrevistas Semi-estruturadas e em Profundidade

As entrevistas semi-estruturadas e em profundidade são ferramentas essenciais para explorar as percepções, crenças, atitudes e experiências dos indivíduos. Ao contrário de um questionário, que oferece respostas pré-definidas, uma entrevista permite que o pesquisador explore as razões por trás das respostas, peça esclarecimentos e aprofunde temas emergentes. Em PCI, as entrevistas são cruciais para entender:

  • As percepções de risco dos profissionais: Por que um médico pode considerar o risco de transmissão de uma infecção baixo em uma determinada situação e, consequentemente, optar por não usar luvas ou máscara, mesmo que o protocolo exija? Entrevistas podem revelar que essa decisão é baseada em uma complexa avaliação que inclui a experiência clínica, a familiaridade com o paciente e a percepção da gravidade da doença (Ref. 6).
  • As barreiras e facilitadores percebidos: O que os enfermeiros identificam como os maiores obstáculos ao uso consistente de Equipamentos de Proteção Individual (EPI)? As respostas podem ir além do óbvio (falta de tempo) e incluir o desconforto físico do EPI, a dificuldade de comunicação com pacientes e colegas quando se usa uma máscara, ou a sensação de que o EPI cria uma barreira emocional ao cuidado (Ref. 6, 7).
  • O raciocínio por trás da tomada de decisão clínica: No contexto da gestão de antimicrobianos (antimicrobial stewardship), entrevistas com médicos podem desvendar as complexas pressões que influenciam a prescrição. Essas pressões podem incluir a incerteza diagnóstica, o medo de um desfecho adverso para o paciente, a expectativa percebida do paciente ou da família, e a dinâmica hierárquica dentro da equipe médica (Ref. 12, 13).

2.3 Grupos Focais

Os grupos focais reúnem um pequeno grupo de pessoas com características ou experiências semelhantes para discutir um tópico específico sob a orientação de um moderador. A principal vantagem desse método é a interação entre os participantes, que pode estimular a partilha de experiências, revelar normas sociais e gerar um entendimento coletivo sobre um assunto. Em PCI, os grupos focais são particularmente úteis para:

  • Explorar a perspectiva do paciente: Grupos focais com pacientes que estiveram em precauções de isolamento podem trazer à tona experiências compartilhadas de solidão, estigma e ansiedade. Eles também podem revelar falhas na comunicação por parte da equipe de saúde e gerar sugestões valiosas sobre como melhorar a experiência do paciente e seu engajamento nas práticas de PCI (Ref. 11).
  • Entender a cultura de uma equipe: Um grupo focal com enfermeiros de uma mesma unidade pode ser uma forma eficaz de discutir as “regras não escritas” e as normas coletivas que governam as práticas de PCI naquele ambiente. A dinâmica da discussão pode revelar consensos, conflitos e a influência de líderes de opinião informais dentro do grupo.

A escolha da metodologia correta depende intrinsecamente do problema de PCI a ser investigado, como detalhado na tabela abaixo.

Tabela 1: Mapeamento de Metodologias Qualitativas para Desafios em Prevenção e Controle de Infecção.

Desafio em PCI Metodologia Qualitativa Apropriada Racional da Escolha Exemplo de Estudo
Baixa adesão à higiene das mãos Observação Etnográfica Captura a discrepância entre a prática prescrita e a real, identificando barreiras ambientais (pias mal localizadas) e de fluxo de trabalho (urgências) que não seriam reveladas em entrevistas. Um estudo que observa enfermeiros em uma UTI para mapear seus movimentos e identificar os momentos críticos onde a higiene das mãos falha devido a interrupções e à necessidade de priorizar tarefas concorrentes.
Uso inconsistente de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) Entrevistas Semi-estruturadas Explora em profundidade as percepções individuais de risco, o desconforto físico, as barreiras de comunicação e as “regras não escritas” da equipe que influenciam a decisão de usar ou não o EPI. Entrevistas com médicos e enfermeiros para entender por que eles percebem o risco de certas infecções como baixo, levando à não utilização de luvas ou máscaras em situações de baixo risco percebido, ou como o desconforto do EPI afeta a interação com o paciente.
Prescrição inadequada de antimicrobianos (Antimicrobial Stewardship) Estudo de Caso com Múltiplos Métodos (Entrevistas + Observação) Analisa a complexa tomada de decisão clínica, combinando a observação das interações da equipe (visitas ao leito) com entrevistas para entender as pressões hierárquicas, a incerteza diagnóstica e as influências sociais na prescrição. Um estudo de caso em uma enfermaria médica, combinando observação de rondas com entrevistas com médicos seniores e residentes para desvendar as dinâmicas de poder na decisão de iniciar ou descontinuar um antibiótico.
Experiência negativa do paciente em isolamento Grupos Focais com Pacientes e Famílias Permite a exploração de experiências compartilhadas, medos e ansiedades, gerando insights sobre como melhorar a comunicação, o apoio psicossocial e o engajamento do paciente nas práticas de PCI. Grupos focais com pacientes que estiveram em precauções de contato para discutir seus sentimentos de estigma, solidão e sua compreensão (ou falta dela) sobre o porquê do isolamento, levando a recomendações para uma comunicação mais empática.

 

3. Principais Conclusões da Literatura: Barreiras, Facilitadores e a Cultura de Segurança

A síntese da vasta literatura qualitativa em PCI revela um conjunto consistente de temas que transcendem diferentes contextos clínicos e geográficos. Essas descobertas coletivas fornecem um diagnóstico profundo dos desafios enfrentados na implementação de práticas de PCI e apontam para as alavancas mais eficazes para a mudança.

3.1. Aderência às Práticas Fundamentais: Para Além do Conhecimento

A pesquisa qualitativa sobre a adesão a práticas básicas como a higiene das mãos e o uso de EPIs desloca consistentemente a narrativa da culpa individual para uma compreensão sistêmica. As conclusões demonstram que a não adesão é menos uma questão de desafio intencional e mais uma resposta racional, embora inadequada, a um ambiente de trabalho exigente.

  • Pressão de Tempo e Carga de Trabalho: Um dos achados mais ubíquos é o impacto da carga de trabalho e da pressão do tempo. Profissionais de saúde operam em uma “economia de tempo”, onde cada segundo conta. Nesse contexto, práticas que consomem tempo, como caminhar até uma pia ou vestir e remover EPIs, são frequentemente omitidas em favor de tarefas percebidas como mais urgentes no cuidado direto ao paciente (Ref. 7). A não adesão torna-se um “atalho” para lidar com uma carga de trabalho insustentável.
  • Design do Ambiente e Fluxo de Trabalho: A etnografia revela como o ambiente físico pode ser um grande impedimento. Dispensadores de álcool em gel vazios ou mal localizados, pias distantes do leito do paciente, e a falta de espaço para descartar EPIs contaminados de forma segura são barreiras físicas que interrompem o fluxo de trabalho e tornam a adesão mais difícil (Ref. 7, 8).
  • Percepção de Risco e “Automatismo”: Os profissionais não aplicam os protocolos de forma robótica. Eles realizam constantes avaliações subjetivas de risco. Um estudo pode mostrar que um profissional pode pular a higiene das mãos antes de tocar em um paciente que ele percebe como “limpo” ou de baixo risco, reservando a prática para situações percebidas como de alto risco (Ref. 5). Esse “automatismo” baseado na experiência pode substituir as diretrizes de precauções padrão, que exigem uma abordagem universal.
  • Desconforto e Barreiras de Comunicação do EPI: O uso de EPIs não é uma ação neutra. Entrevistas revelam que máscaras, óculos de proteção e aventais podem ser fisicamente desconfortáveis, causar calor e dificultar a comunicação verbal e não verbal, criando uma barreira entre o cuidador e o paciente. Os profissionais podem remover o EPI prematuramente para facilitar uma conversa mais empática ou para realizar uma tarefa que exige maior destreza, equilibrando o risco de infecção com as necessidades imediatas do cuidado (Ref. 6).

3.2. A Cultura Organizacional como Fator Determinante

Talvez a contribuição mais significativa da pesquisa qualitativa seja a identificação da cultura organizacional como um fator determinante do sucesso da PCI. A cultura, definida como “a forma como as coisas são realmente feitas por aqui”, pode apoiar ou minar as políticas formais. Uma cultura de segurança positiva é um pré-requisito para a sustentabilidade de qualquer programa de PCI (Ref. 4).

  • Liderança e Exemplo: A liderança, tanto formal (chefes de serviço, supervisores de enfermagem) quanto informal (profissionais seniores respeitados), desempenha um papel fundamental. Quando os líderes modelam consistentemente o comportamento seguro (por exemplo, higienizando as mãos visivelmente), estabelecem expectativas claras e responsabilizam a equipe pelo cumprimento, eles sinalizam que a segurança é uma prioridade real (Ref. 9). A ausência de uma liderança engajada e visível é frequentemente citada como uma barreira importante.
  • Trabalho em Equipe e Segurança Psicológica: A dinâmica da equipe é crucial. Em culturas com alta segurança psicológica, os membros da equipe sentem-se à vontade para falar, questionar práticas inseguras de colegas (independentemente da hierarquia) e admitir erros sem medo de retaliação (Ref. 3). Essa capacidade de “falar” atua como uma rede de segurança em tempo real. Em contrapartida, em ambientes onde há medo, culpa e falta de confiança, os erros são escondidos e as oportunidades de aprendizado são perdidas.
  • Hierarquias de Poder: As hierarquias tradicionais no setor da saúde, especialmente entre médicos e enfermeiros, podem ser um obstáculo significativo à segurança. Estudos qualitativos documentam a relutância de enfermeiros ou médicos juniores em corrigir um médico sênior que comete uma falha na técnica asséptica ou na higiene das mãos, por medo de consequências negativas para sua carreira ou relacionamento profissional (Ref. 8).

Esses componentes culturais interagem para formar o que pode ser entendido como o “sistema imunológico” organizacional de uma instituição de saúde. Assim como o sistema imunológico biológico do corpo, uma cultura de segurança robusta está constantemente vigilante, pronta para identificar e neutralizar ameaças. Quando um membro da equipe observa um lapso na higiene das mãos, uma cultura forte permite que ele “detecte” essa ameaça e a comunique abertamente (a resposta imune). A equipe pode então discutir o evento em um briefing, entender suas causas (por exemplo, um dispensador de álcool mal posicionado) e implementar uma solução (a memória imunológica), fortalecendo as defesas da organização contra futuras falhas. Por outro lado, uma cultura fraca, caracterizada por hierarquia rígida, medo e falta de comunicação, é “imunossuprimida”. A ameaça não é detectada ou é ignorada, a resposta é silenciada e o sistema não aprende, permanecendo vulnerável a falhas repetidas que podem culminar em surtos de infecção. A pesquisa qualitativa é a principal ferramenta para diagnosticar a saúde desse sistema imunológico organizacional, revelando que o fortalecimento da PCI requer intervenções que promovam liderança, segurança psicológica e comunicação aberta, e não apenas a adesão a protocolos técnicos (Ref. 3).

3.3. A Perspectiva do Paciente e da Família: De Recipientes Passivos a Parceiros Ativos

Historicamente, os pacientes têm sido vistos como recipientes passivos das medidas de PCI. A pesquisa qualitativa tem sido fundamental para mudar essa perspectiva, dando voz aos pacientes e revelando-os como parceiros potenciais e essenciais na segurança.

  • O Impacto Psicossocial do Isolamento: Estudos que utilizam entrevistas e grupos focais com pacientes colocados em precauções de contato ou respiratórias pintam um quadro vívido do impacto psicossocial dessas medidas. Os pacientes frequentemente relatam sentimentos de solidão, estigma, ansiedade e depressão (Ref. 11). Eles se sentem “sujos” ou “contagiosos”, e a barreira física do EPI pode levar a uma diminuição na frequência e na qualidade da interação com os profissionais de saúde.
  • Comunicação e Educação: Uma queixa comum dos pacientes é a falta de comunicação clara e empática sobre o motivo do isolamento. Muitas vezes, eles não entendem por que as precauções são necessárias, o que aumenta sua ansiedade e diminui sua cooperação (Ref. 11). A pesquisa qualitativa destaca a necessidade de explicações claras, consistentes e compassivas para engajar os pacientes como participantes informados em seu próprio cuidado.
  • O Papel do Paciente na Autoproteção: Quando os pacientes são devidamente informados e o ambiente cultural é propício, eles podem se tornar uma camada adicional de segurança. Estudos exploram programas de “capacitação do paciente” (patient empowerment), onde os pacientes são encorajados a perguntar aos profissionais de saúde se eles higienizaram as mãos (Ref. 10). O sucesso de tais programas depende criticamente de uma cultura que não seja defensiva e que veja a pergunta do paciente como uma contribuição bem-vinda à segurança, e não como um desafio à autoridade profissional.

3.4. Desafios na Gestão de Antimicrobianos e Surtos

A pesquisa qualitativa também oferece insights cruciais em duas das áreas mais complexas da PCI: a gestão de antimicrobianos (Antimicrobial Stewardship, AMS) e a resposta a surtos.

  • Gestão de Antimicrobianos (AMS): A decisão de prescrever um antibiótico raramente é um cálculo puramente técnico baseado em diretrizes. Entrevistas com médicos revelam que a prescrição é um ato profundamente social, influenciado por uma miríade de fatores. A incerteza diagnóstica, o desejo de “fazer alguma coisa” pelo paciente, a pressão percebida dos pares ou dos pacientes, e as dinâmicas hierárquicas (onde um residente pode hesitar em desafiar a prescrição de um sênior) desempenham papéis significativos (Ref. 12, 13). A compreensão dessas pressões sociais e culturais é essencial para projetar programas de AMS que vão além da simples disseminação de diretrizes e abordam os verdadeiros motores do comportamento prescritivo.
  • Resposta a Surtos: Durante um surto, a tomada de decisão ocorre sob alta pressão e incerteza. Estudos de caso qualitativos que analisam a resposta a surtos podem identificar falhas na comunicação entre departamentos, conflitos de liderança e desafios na implementação rápida de medidas de controle (Ref. 1). Essas análises retrospectivas são inestimáveis para aprender com as crises e melhorar os planos de preparação para futuras emergências.

4: Da Evidência à Prática: Traduzindo Pesquisas Qualitativas em Estratégias Efetivas de PCI

O valor final da pesquisa qualitativa não reside apenas na geração de insights, mas na sua capacidade de informar o desenvolvimento de intervenções de PCI mais eficazes, contextualmente apropriadas e sustentáveis. Mover-se da evidência para a prática requer um compromisso com a tradução do conhecimento, onde os achados qualitativos são usados para projetar, implementar e avaliar estratégias de melhoria.

4.1: Co-design de Intervenções

Uma das implicações mais importantes da pesquisa qualitativa é o reconhecimento de que as soluções “tamanho único” (one-size-fits-all) para a PCI estão fadadas ao fracasso. Cada ambiente de saúde tem sua própria cultura, fluxo de trabalho e conjunto de barreiras. Portanto, as intervenções mais eficazes são aquelas que são “contextualmente sensíveis” e, idealmente, co-desenhadas com os profissionais de saúde da linha de frente e com os pacientes (Ref. 14). A pesquisa qualitativa é a ferramenta fundamental para informar este processo de co-design. Ao realizar entrevistas, grupos focais e observações em um ambiente específico, as equipes de PCI podem obter um diagnóstico preciso dos problemas locais e trabalhar colaborativamente com a equipe para desenvolver soluções que sejam práticas, relevantes e aceitáveis para eles.

4.2: Exemplos de Estratégias Informadas pela Pesquisa Qualitativa

A aplicação dos achados qualitativos pode transformar a abordagem das intervenções de PCI:

  • Redesenho do Ambiente Físico: Em vez de simplesmente instalar mais dispensadores de álcool em gel, dados etnográficos sobre os fluxos de trabalho dos enfermeiros podem ser usados para posicioná-los estrategicamente nos pontos de maior conveniência e necessidade, como na entrada e saída dos quartos e ao lado dos computadores de registro (Ref. 8). Isso remove uma barreira física e integra a higiene das mãos ao fluxo natural do cuidado.
  • Treinamento Baseado em Simulação e Reflexão: A constatação de que o conhecimento não é a principal barreira sugere uma mudança nos métodos de treinamento. Em vez de palestras passivas, as organizações podem usar cenários realistas, derivados de observações e entrevistas, para sessões de simulação (Ref. 1). Nessas sessões, as equipes podem praticar a navegação por dilemas comuns (por exemplo, como lembrar um colega sênior de higienizar as mãos) e refletir sobre as barreiras culturais e sistêmicas em um ambiente seguro.
  • Desenvolvimento de Liderança em PCI: Reconhecendo o papel crítico da liderança, as organizações podem implementar programas de treinamento para chefes de unidade e supervisores. Esses programas, informados por pesquisas sobre cultura de segurança, focariam em habilidades como construir segurança psicológica, fornecer feedback construtivo sobre práticas de PCI e modelar comportamentos seguros de forma visível e consistente (Ref. 9).
  • Melhoria da Comunicação com o Paciente: Os insights de grupos focais com pacientes podem ser usados para redesenhar completamente a forma como as informações sobre precauções de isolamento são comunicadas (Ref. 11). Isso pode incluir o desenvolvimento de folhetos informativos mais claros e empáticos, a criação de roteiros para os profissionais de saúde explicarem o “porquê” do isolamento, e a implementação de check-ins regulares para abordar as preocupações psicossociais dos pacientes.

4.3: O Papel de Recursos Nacionais e Plataformas de Conhecimento

A tradução do conhecimento em larga escala depende da disponibilidade de plataformas que possam sintetizar e disseminar evidências de forma acessível. No Brasil, o site da CCIH (Comissão de Controle de Infecção Hospitalar), www.ccih.med.br , representa um exemplo de recurso vital nesse ecossistema (Ref. 15). Embora tradicionalmente focado em diretrizes técnicas, legislação e dados epidemiológicos, esse tipo de plataforma tem um potencial imenso para ampliar seu papel. Ele pode se tornar um canal crucial para a disseminação de resumos de pesquisas qualitativas, estudos de caso sobre a implementação de intervenções bem-sucedidas e ferramentas práticas (como guias de entrevista ou roteiros de comunicação) que ajudam os profissionais de PCI em todo o país a aplicar essas evidências em seus contextos locais únicos. Ao integrar a dimensão humana e comportamental da PCI em seus recursos, plataformas como esta podem acelerar a transição de uma abordagem puramente técnica para uma abordagem socio-técnica mais holística e eficaz.

5: Horizontes Futuros e a Consolidação da Abordagem Qualitativa na Saúde Global

A jornada da pesquisa qualitativa em PCI, de uma metodologia de nicho para um componente central da ciência da implementação, está bem encaminhada. As evidências acumuladas demonstram de forma conclusiva seu valor indispensável (Ref. 1). Olhando para o futuro, a integração sistemática de métodos qualitativos e quantitativos — a abordagem de métodos mistos — deve ser considerada o padrão-ouro para a pesquisa e a prática em PCI, permitindo uma compreensão completa e acionável dos desafios de segurança do paciente.

5.1: Síntese Final

Este artigo demonstrou que a pesquisa qualitativa humaniza a PCI, revelando-a como uma disciplina socio-técnica complexa, onde os resultados são moldados tanto pela cultura organizacional e comportamento humano quanto pela microbiologia e epidemiologia. Ela move o foco da culpa individual para o diagnóstico sistêmico, identificando como fluxos de trabalho, design ambiental e hierarquias de poder criam as condições para o sucesso ou o fracasso (Ref. 3, 4). Os insights sobre a cultura de segurança como um “sistema imunológico” organizacional, a importância da perspectiva do paciente e as pressões sociais na tomada de decisões clínicas são contribuições fundamentais que só a investigação qualitativa poderia fornecer (Ref. 1, 8, 11, 13). A tradução desses insights em intervenções co-desenhadas e contextualmente sensíveis é o caminho para melhorias significativas e sustentáveis nas taxas de IRAS (Ref. 14).

5.2: Áreas Emergentes para Investigação Qualitativa

O campo da PCI está em constante evolução, e novas fronteiras exigem a aplicação de lentes qualitativas para uma compreensão profunda:

  • Preparação para Pandemias: A pandemia de COVID-19 foi um teste de estresse global para os sistemas de saúde e as práticas de PCI. A pesquisa qualitativa é essencial para capturar as experiências vividas dos profissionais de saúde da linha de frente — o trauma, o esgotamento, os dilemas éticos e as inovações adaptativas que surgiram (Ref. 7). Entender essas experiências é crucial para informar políticas de saúde mental para profissionais, melhorar o treinamento para futuras crises e projetar sistemas de saúde mais resilientes.
  • Telemedicina e PCI: A rápida expansão da telemedicina introduz novos paradigmas de cuidado e, com eles, novos e ainda pouco compreendidos riscos de PCI (por exemplo, na gestão de cuidados domiciliares complexos). A pesquisa qualitativa pode explorar como as práticas de segurança são negociadas e comunicadas remotamente entre profissionais, pacientes e cuidadores.
  • Sustentabilidade e PCI: A pandemia destacou o enorme impacto ambiental da PCI, particularmente o descarte maciço de EPIs de uso único. A pesquisa qualitativa pode investigar as atitudes de profissionais e organizações em relação a práticas mais sustentáveis (como o uso de aventais reutilizáveis ou a esterilização de equipamentos), identificando as barreiras culturais e logísticas para uma “PCI verde”.

5.3: Chamado à Ação

Para que o potencial da pesquisa qualitativa seja plenamente realizado, é necessário um esforço concertado de todas as partes interessadas no ecossistema da saúde. Agências de fomento à pesquisa devem reconhecer e financiar adequadamente estudos qualitativos e de métodos mistos em PCI, tratando-os com o mesmo rigor e importância que os estudos quantitativos. Editores de periódicos e revisores devem desenvolver maior expertise na avaliação da qualidade e do rigor da pesquisa qualitativa. Hospitais e sistemas de saúde devem investir na capacitação de suas equipes de PCI para conduzir e utilizar pesquisas qualitativas locais como uma ferramenta de diagnóstico e melhoria contínua da qualidade. Finalmente, os formuladores de políticas devem usar as ricas evidências contextuais geradas pela pesquisa qualitativa para desenvolver diretrizes e políticas que não sejam apenas baseadas em evidências, mas também implementáveis no mundo real. A integração da dimensão humana não é um luxo, mas uma condição essencial para alcançar o objetivo final de zero infecções relacionadas à assistência à saúde.

6: Conclusão

A pesquisa qualitativa desempenha um papel vital na prevenção e controle de infecções ao iluminar a complexa interação de fatores humanos, organizacionais e contextuais que moldam as práticas de PCI. As evidências reforçam a necessidade de abordagens sensíveis ao contexto, participativas e inclusivas, que vão além do cumprimento técnico para enfrentar os desafios reais vividos por profissionais e organizações de saúde.

A pesquisa qualitativa não é apenas um complemento, mas um componente essencial para compreender e enfrentar os desafios do controle de infecções. Ao ouvir, interpretar e valorizar a experiência dos profissionais de saúde, gestores e pacientes, conseguimos criar soluções mais ajustadas à realidade e mais efetivas. É nesse diálogo entre evidências e vivências que se constrói uma gestão hospitalar mais segura, humana e eficiente.

 

7: Referências bibliográficas

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  15. CCIH. Portal da Comissão de Controle de Infecção Hospitalar. Disponível em: http://www.ccih.med.br. Acesso em: 15 out. 2023.

 

Elaborado por:

Antonio Tadeu Fernandes:

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