Artigo: Impact of Antimicrobial Stewardship on Reducing Antimicrobial Resistance por Khadse, Ugemuge e Singh (2023)
A resistência antimicrobiana (RAM) é, sem dúvida, uma das crises de saúde pública mais prementes do século XXI, representando uma ameaça existencial à medicina moderna. A cada ano, milhões de vidas são impactadas, e trilhões de dólares são perdidos devido à ineficácia crescente dos antibióticos. Neste cenário de urgência global, os Programas de Gestão de Antimicrobianos (PGAs), ou Antimicrobial Stewardship Programs, emergem não como uma opção, mas como uma estratégia indispensável. O artigo de revisão “Impact of Antimicrobial Stewardship on Reducing Antimicrobial Resistance”, publicado por Sagar N. Khadse, Sarita Ugemuge e Charu Singh em 2023, surge como um lembrete oportuno e um guia conciso sobre a relevância e as estratégias desses programas no combate à escalada das superbactérias. Para profissionais e estudantes da área de saúde, a leitura atenta deste estudo não apenas reforça a gravidade do problema, mas também oferece perspectivas valiosas sobre as ferramentas e abordagens necessárias para aprimorar a prática clínica e salvaguardar o arsenal terapêutico para as futuras gerações.
A urgência da resistência e a promessa da Gestão Antimicrobiana
O ponto de partida do artigo de Khadse, S et al (2023) é a constatação inequívoca de que a resistência antimicrobiana atingiu um nível crítico. Desde a descoberta da penicilina, o uso, muitas vezes indiscriminado e inadequado, de antibióticos tem acelerado a seleção e proliferação de microrganismos multirresistentes (MDRs), tornando infecções outrora tratáveis em desafios terapêuticos complexos e, por vezes,
insolúveis. Esta ineficácia crescente exige a utilização de agentes antimicrobianos mais potentes e caros, aumentando o ônus sobre os pacientes e os sistemas de saúde.
É neste contexto que os autores introduzem e contextualizam os PGAs. Definidos como programas sistemáticos e coordenados para promover o uso apropriado de antimicrobianos, os PGAs buscam otimizar a terapia antimicrobiana, reduzir a toxicidade e os custos, e, crucialmente, combater a emergência e a disseminação de microrganismos resistentes. O estudo reforça a ideia de que um PGA eficaz vai muito além de meras restrições; ele se baseia em uma abordagem multifacetada que integra ciência, educação e colaboração interprofissional.
Pilares de um Programa de Gerenciamento de Antimicrobianos eficaz: estratégias e implementação
O ponto principal do artigo é explicar detalhadamente as várias estratégias que fazem um Programa de Gestão de Antimicrobianos dar certo. Os autores categorizam essas intervenções, oferecendo um roteiro para profissionais e instituições.
Liderança e Responsabilidade: A fundação de qualquer PGA reside em uma liderança clara e comprometida. O artigo enfatiza a necessidade de uma equipe dedicada, idealmente composta por um médico infectologista e um farmacêutico com papel de colíderes, que atuem em conjunto com microbiologistas, profissionais de controle de infecção e a administração hospitalar. Essa estrutura de governança assegura a coordenação das ações e a alocação de recursos necessários.
Abordagens pré e pós-prescrição:
Pré-prescrição (intervenções proativas): Incluem a elaboração de diretrizes institucionais de uso de antibióticos, baseadas em dados epidemiológicos locais (antibiogramas) e evidências científicas. A implementação de formulários restritos, que exigem aprovação prévia para certos antibióticos de amplo espectro ou de alto custo, é uma ferramenta poderosa para controlar o uso irracional. A classificação WHO AWaRe (Access, Watch, Reserve), que categoriza os antibióticos com base em seu potencial de resistência e importância para a saúde pública, é destacada como um guia para a seleção racional.
Pós-prescrição (intervenções reativas): Envolvem a revisão contínua das prescrições, aqui, o farmacêutico clínico desempenha um papel vital, analisando a adequação da dose, via de administração, duração do tratamento e a possibilidade de descalonamento. A comunicação com o prescritor para ajustes na terapia é uma prática central.
Descalonamento da Terapia Antimicrobiana: Uma estratégia crucial que consiste em modificar um regime empírico de amplo espectro para um antibiótico de espectro mais estreito e específico, uma vez que o patógeno causador da infecção e seu perfil de suscetibilidade são identificados por meio de exames laboratoriais. Isso minimiza a pressão seletiva sobre outros microrganismos e reduz a probabilidade de desenvolvimento de novas resistências.
Avanços Diagnósticos: A capacidade de identificar rapidamente o agente etiológico de uma infecção e seu perfil de resistência é um divisor de águas na gestão antimicrobiana. O artigo menciona a relevância de técnicas como a espectrometria de massa (MALDI-TOF), o sequenciamento de nova geração (NGS) e a Reação em Cadeia da Polimerase (PCR) na agilização do diagnóstico. Diagnósticos precisos e rápidos permitem uma terapia direcionada, evitando o uso desnecessário de antibióticos de amplo espectro.
Melhora nas Práticas de Prescrição e Auditoria com Feedback: A educação e o treinamento contínuos dos prescritores são essenciais para promover a adesão às diretrizes. A auditoria das prescrições e o fornecimento de feedback construtivo e individualizado aos profissionais são ferramentas poderosas para identificar áreas de melhoria e reforçar as práticas corretas.
Medidas de Controle de Infecção: O artigo também enfatiza a inter-relação entre PGAs e as práticas de controle de infecção. A prevenção da transmissão de MDROs através de higiene das mãos, isolamento de pacientes e limpeza ambiental é tão vital quanto o uso racional de antibióticos.
Impacto e eficácia: o que os dados sugerem
Khadse, Ugemuge e Singh utilizam evidências para demonstrar o impacto dos PGAs na redução da RAM. Eles citam estudos que observaram, por exemplo, uma diminuição na resistência a macrolídeos em Streptococcus pyogenes e reduções na prevalência de outras bactérias resistentes devido a uma gestão antimicrobiana eficaz. Essa correlação direta entre a implementação de PGAs e a desaceleração da resistência é o argumento mais contundente para justificar o investimento e o esforço contínuo nesses programas.
A evidência de que os PGAs contribuem para a redução de custos e de toxicidade de medicamentos também é um ponto salientado, embora não aprofundado com dados financeiros.
Pontos Fortes: a contribuição inquestionável do estudo
A principal fortaleza do artigo reside na sua capacidade de síntese e na clareza com que delineia os componentes essenciais de um PGA. Para estudantes e profissionais que buscam uma visão panorâmica e bem organizada do que é um Programa de Gestão de Antimicrobianos e como ele opera, este artigo serve como um excelente ponto de partida. A linguagem é acessível, mas formal, tornando conceitos complexos compreensíveis.
A ênfase na abordagem multidisciplinar é um aspecto crucial e bem explorado, pois reflete a realidade da prática clínica. O sucesso do stewardship depende da colaboração entre médicos (infectologistas, intensivistas, clínicos), farmacêuticos (clínicos, hospitalares), microbiologistas, enfermeiros de controle de infecção e a gestão hospitalar. O artigo ressalta que essa interconexão é a chave para uma implementação robusta e duradoura.
Outro ponto forte é a conexão explícita entre os PGAs e os desfechos clínicos e microbiológicos. Ao citar a redução da resistência em microrganismos específicos, o artigo transcende a teoria e oferece evidências de que os programas realmente funcionam, fornecendo um argumento poderoso para o investimento e a adesão às diretrizes. A incorporação dos avanços diagnósticos no rol de estratégias de stewardship é uma visão atualizada, reconhecendo que a velocidade e precisão do diagnóstico são tão importantes quanto a escolha do antibiótico.
A menção à educação e conscientização como pilares também é digna de destaque. A mudança de comportamento e a internalização da responsabilidade pelo uso racional de antibióticos não ocorrem apenas por meio de imposições, mas principalmente através do conhecimento e da compreensão das consequências do uso inadequado, tanto para o paciente individual quanto para a saúde coletiva.
Pontos Fracos: oportunidades para aprofundamento e reflexão crítica
Apesar de suas qualidades, o artigo, como uma revisão ampla, apresenta certas limitações que, para um público profissional e acadêmico, representam oportunidades para um aprofundamento crítico e uma contextualização mais robusta.
Primeiramente, a generalidade das evidências é um ponto de atenção. Embora os autores citem a redução da resistência, o artigo carece de uma análise mais detalhada e crítica dos dados. Faltam, por exemplo, discussões sobre a heterogeneidade dos estudos, as metodologias empregadas, a magnitude do impacto em diferentes contextos clínicos e as diferenças dos perfis de resistência específicos. Para um profissional que
busca aplicar essas informações em seu contexto, uma compreensão mais aprofundada dos “quais, quandos e com que intensidade” seria benéfica.
Em segundo lugar, a discussão sobre os desafios práticos e barreiras à implementação dos PGAs é relativamente superficial. O artigo menciona a “premente necessidade de uma implementação mais abrangente em regiões menos desenvolvidas”, mas não explora as complexas barreiras socioeconômicas, culturais, estruturais e de recursos humanos que esses contextos enfrentam. Questões como a escassez de infectologistas e farmacêuticos clínicos, a falta de infraestrutura laboratorial, a resistência dos prescritores a mudanças de conduta ou a ausência de sistemas de informação adequados, são obstáculos que mereceriam uma discussão mais aprofundada e propostas de soluções práticas.
Além disso, a análise de custo-efetividade é mencionada, mas não explorada em detalhes. Embora seja afirmado que a RAM gera “custos consideráveis” e os PGAs resultam em “economias substanciais”, o artigo não apresenta dados financeiros concretos, modelos de avaliação econômica ou exemplos de retorno sobre o investimento (ROI). Para administradores de saúde e formuladores de políticas que precisam justificar orçamentos e investimentos em PGAs, essa lacuna é significativa. Uma discussão mais aprofundada sobre como quantificar e comunicar o valor econômico dos PGAs seria de grande relevância.
Por fim, a revisão poderia se beneficiar de uma exploração mais robusta das abordagens para superar a inércia e promover a mudança de comportamento dos prescritores. Embora a educação seja citada, a complexidade das decisões clínicas e a resistência a ajustar práticas enraizadas (como o descalonamento ou a mudança de antibióticos com base em antibiogramas, conforme destacado em experiências práticas) mereceriam uma discussão mais aprofundada sobre estratégias comportamentais, ferramentas de decision support ou a importância do feedback contínuo.
Discussão e relevância para profissionais e estudantes de saúde
O artigo de Khadse, Ugemuge e Singh serve como um pilar fundamental para a compreensão da gestão antimicrobiana em 2023. Para profissionais de saúde, ele não apenas válida a urgência de agir contra a RAM, mas também organiza as estratégias em um framework compreensível e aplicável. A mensagem central é clara: a gestão de antimicrobianos não é um luxo, mas uma necessidade imperativa para a prática clínica segura e sustentável.
Para os estudantes, o estudo oferece uma introdução robusta e atualizada a um dos temas mais críticos da saúde global. Ele sublinha a natureza multidisciplinar da medicina
moderna e a importância de uma visão integrada para resolver problemas complexos como a RAM. Ao expor os pilares de um PGA, o artigo prepara a futura força de trabalho para incorporar esses princípios em suas carreiras, independentemente de sua especialidade.
A relevância do estudo transcende a mera apresentação de conceitos; ele atua como um catalisador para a reflexão crítica. Ao identificar os pontos fortes, os profissionais podem consolidar as bases de seus próprios PGAs, enquanto a análise dos pontos fracos inspira a busca por aprofundamento e a adaptação das estratégias às realidades locais. A crise da RAM exige não apenas o conhecimento, mas a ação informada e colaborativa. É imperativo que cada prescritor, cada farmacêutico, cada enfermeiro e cada gestor de saúde internalize a responsabilidade compartilhada pela preservação dos antimicrobianos. O artigo, em sua essência, é um convite à ação, um lembrete de que a batalha contra as superbactérias é contínua e seu sucesso depende do compromisso coletivo. Ao investir em PGAs e em uma cultura de uso racional de antimicrobianos, garantimos que a promessa dos antibióticos continue a salvar vidas nas próximas décadas.
Artigos complementares ao tema
Para fortalecer a análise crítica e contextualizar com a literatura internacional e latino-americana, destacam-se os seguintes estudos:
1. Baur, D. et al. (2017).
Effect of antibiotic stewardship on the incidence of infection and colonisation with antibiotic-resistant bacteria and Clostridium difficile infection: a systematic review and meta-analysis. The Lancet Infectious Diseases, v.17, n.9, p.990–1001.
DOI: 10.1016/S1473-3099(17)30325-0
Conclusão: Programas de stewardship reduziram significativamente infecções por C. difficile e patógenos resistentes, inclusive em países com menos recursos.
2. Silva, M.C. et al. (2021).
Implementação de programa de gestão de antimicrobianos em hospital universitário: relato de experiência. Revista Brasileira de Ciências da Saúde, v.25, n.4, p.43-52.
DOI: 10.22478/ufpb.2317-6032.2021v25n4.54846
Conclusão: A implantação do PGA permitiu a diminuição do consumo de antibióticos restritos, reforçando o papel educativo e a abordagem multiprofissional como pilares centrais.
3. Schuts, E.C. et al. (2016).
Current evidence on hospital antimicrobial stewardship objectives: a systematic review and meta-analysis. The Lancet Infectious Diseases, v.16, n.7, p.847–856.
DOI: 10.1016/S1473-3099(16)00065-7
Conclusão: PGAs estão associados à redução de mortalidade hospitalar, duração da internação e eventos adversos relacionados a antimicrobianos, indicando não apenas segurança, mas também eficiência clínica.
4. Oliveira, F.A. et al. (2020).
Uso racional de antimicrobianos em unidades de terapia intensiva: avaliação de um programa de stewardship. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, v.53.
DOI: 10.1590/0037-8682-0362-2019
Conclusão: A vigilância contínua e a interface com equipes assistenciais resultaram em melhora significativa da adesão às diretrizes e redução no uso de carbapenêmicos.
Conclusão Integrada
O artigo de Khadse et al. (2023) contribui com uma base sólida para compreender os fundamentos da gestão de antimicrobianos, destacando sua relevância diante da escalada da resistência bacteriana. A articulação com a literatura científica demonstra que os PGAs, quando bem estruturados, reduzem infecções por microrganismos multirresistentes, melhoram desfechos clínicos e promovem o uso racional dos recursos terapêuticos.
Contudo, o sucesso desses programas depende de sua adaptação à realidade local, da superação de barreiras estruturais e da construção de uma cultura institucional voltada à segurança do paciente. A experiência latino-americana, em especial no Brasil, mostra que é possível avançar mesmo diante de limitações orçamentárias, desde que haja articulação entre gestores, profissionais da linha de frente e núcleos de controle de infecção.
A publicação analisada, enriquecida por evidências complementares, reforça o chamado à ação: o combate à resistência antimicrobiana é uma missão coletiva e urgente, que exige conhecimento técnico, compromisso ético e políticas institucionais robustas. O tempo de agir é agora.
Sinopse escrita, por:
Ma. Jéssica Cristina Bilizario Noguerol Andrade
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