Impacto de cuidados orais na mortalidade de pacientes criticamente doentes em unidades de terapia intensiva
Estudo brasileiro indica o possível impacto sobre a mortalidade e a ocorrência de pneumonia e, com certa surpresa, de sepse, devido a inclusão de cirurgião-dentista na equipe multidisciplinar da CTI
Qual importância do microbioma da cavidade oral na mortalidade de pacientes?
O desenvolvimento de estratégias preventivas tem reduzido a incidência de pneumonia associada a ventilação mecânica (VAP). Porém, apesar de diversos esforços, as infecções relacionadas ao ambiente de cuidados de saude (HAI) continuam a ser uma importante causa de maior morbidade e mortalidade.
Essa situação é ainda mais notável no contexto de terapia intensiva, pois pacientes críticos requerem cuidados múltiplos e complexos. Dessa forma, é comum que a cavidade oral acabe sendo deixada em segundo plano; mesmo sendo bem estabelecido na literatura que a higiene e saude oral de baixo nível aumentam o risco de infecções nosocomiais do trato respiratório.
O cuidado oral é fundamental para manter condições de saúde bucal apropriadas e prevenir a colonização das vias aéreas pelo biofilme formado cotidianamente na cavidade oral. Contudo a concretização desses cuidados não é simples e pode ser um ponto de dificuldade.
Qual foi o objetivo do estudo?
O principal objetivo do estudo foi avaliar o efeito da inclusão de cirurgiões dentistas – com foco na higiene oral e tratamento de doenças periodontais – no time multidisciplinar da UTI sobre o risco de desenvolvimento de VAP e mortalidade de pacientes críticos nas UTIs.
Qual foi a metodologia do estudo?
Este estudo foi originalmente desenhado com um ensaio clínico cruzado randomizado de cluster aberto; contudo, devido a pandemia de COVID-19, as atividades clínicas do estudo foram descontinuadas em março de 2020.
Os autores prosseguiram então com uma análise retrospectiva dos dados das 2 UTIs (UTIs do HC FMRP-USP, sendo 1 UTI médica de 13 leitos e a outra especializada em cuidados de emergência contando com 10 leitos) que já haviam sido coletados durante o período de intervenção realizado. Dessa forma, o estudo foi redesenhado como um estudo quase-experimental com serie temporal interrompida usando os dados coletados durante a intervenção realizada no ano de 2019 e comparando-os a dados coletados referentes aos anos de 2016-2018 das mesmas unidades. O efeito de interesse primário do estudo foi mortalidade por 100 hospitalizações e o secundário foi densidade de incidência de VAP por 1000 pacientes-dia de ventilação.
O período pré-intervenção foi de 2016-2018. Neste período os pacientes recebiam cuidados orais 3 vezes ao dia. O cuidado era realizado pela equipe de enfermagem da UTI e era realizada a limpeza da cavidade oral com swab oral ou espátula envolvida em gaze, e aplicação tópica de solução de digluconato de clorexidina 0.12%.
O período de intervenção por sua vez foi de janeiro a novembro de 2019. Neste período foi realizada a implementação completa de um novo protocolo de higiene oral nas duas unidades – contando com o abandono do uso cotidiano de solução de clorexidina, inclusão da escovação dental e/ou prótese, limpeza do tubo orotraqueal, mucosa oral e língua, 2 vezes ao dia pela equipe de enfermagem da UTI. Os participantes do estudo tiveram também acompanhamento regular de um dentista ao menos 3 vezes por semana – que para além de garantir a adequada limpeza mecânica, se ocuparam da prevenção e tratamento de doenças periodontais.
Quais os principais resultados e discussões?
Durante o período de intervenção foram realizados 5147 procedimentos em leito em 355 pacientes críticos. O estudo apresentou uma significativa redução na mortalidade geral da amostra; este efeito não foi, porém, uniforme entre as duas UTIs – fato provavelmente relacionado a diversidade entre as duas populações.
Os autores ressaltam durante a discussão que a redução na mortalidade percebida não foi associada a uma redução da incidência de VAP. Algumas das hipóteses para este fenômeno foram que o cuidado oral pode ter reduzido a transferência bacteriana da cavidade oral à corrente sanguínea, diminuindo os episódios de sepse; ou ainda que a reduzida inflamação periodontal pode ter participado na prevenção de fenômenos isquêmicos arteriais. Além disso, os autores ressaltam que o protocolo de cuidado dental diário implementado em 2019 aumenta a identificação e tratamento de infecções com foco odontogênico, reduzindo consequências secundarias danosas. Ainda sobre essas hipóteses, ressaltam que estudos futuros são necessários.
Outro ponto importante a ser considerado é que o efeito positivo na mortalidade não deve ser atribuído apenas aos cuidados orais oferecidos pelos dentistas pois uma parte importante do estudo foi justamente a revisão/atualização do protocolo de higiene oral da instituição, além do treinamento quase universal da equipe de enfermagem da UTI para as práticas adequadas de higiene oral no paciente crítico e a redução da exposição de pacientes a antissépticos.
Quais as limitações do estudo, de acordo com seus autores?
Os autores abordam 2 das principais limitações.
A primeira é que o modelo quase-experimental fica sujeito a um viés temporal; essa limitação foi compensada com a comparação de dados retrospectivos de 3 anos consecutivos que não demonstraram diminuição da mortalidade antes da intervenção.
A outra limitação é a possível associação dos resultados com características de base da população de estudo; essa possibilidade não pode ser completamente descartada.
O que os autores concluíram sobre o impacto do cirurgião dentista na mortalidade dos pacientes críticos?
Os dados do estudo sugerem que uma intervenção de cuidados orais com foco na higiene oral e tratamentos periodontais regularmente oferecidos por dentistas para pacientes críticos pode diminuir o risco de morte na UTI. Os autores concluem destacando que estudos clínicos randomizados devem ser realizados para confirmar os achados.
O que destacamos nesse artigo?
O artigo apresenta dados interessantes, principalmente quando comparado ao estudo previamente realizado pelos mesmos autores. A apresentação gráfica dos resultados é muito clara e completa.
Os pesquisadores conseguiram otimizar os dados já coletados de um estudo que por motivo de forças maiores de saúde pública teve de ser interrompido. Esse é um bom exemplo de como situações complexas podem ser contornadas com adaptação de metodologia e ainda sim permitir avanços importantes da ciência. Como os próprios relatam esse é um ponto de partida e estudos clínicos deverão ser feitos para confirmar as hipóteses apresentadas e possibilidade de extrapolar os resultados para outros contextos.
Também foi bastante interessante o achado não incialmente esperado de redução se sepse e as possíveis explicações dos autores para este fato, demonstrando grande versatilidade dos autores readaptando seu projeto devido a pandemia e sendo abertos a novas conclusões, além do projeto inicial. Parabéns pelo excelente artigo que inova e representa uma importante contribuição científica feita em nosso país.
Fonte: Ribeiro ILA, Bellissimo-Rodrigues WT, Mussolin MG, Innocentini LMAR, Marangoni ATD, Macedo LD, Barbosa-Júnior F, de Souza HCC, Menegueti MG, Pereira APS, Gaspar GG, Schmidt A, Miranda CH, Lovato WJ, Puga ML, Auxiliadora-Martins M, Basile-Filho A, Bellissimo-Rodrigues F. Impact of a dental care intervention on the hospital mortality of critically ill patients admitted to intensive care units: A quasi-experimental study. Am J Infect Control. 2022 Oct;50(10):1156-1161
Link: https://doi.org/10.1016/j.ajic.2022.01.022
Links de interesse:
Cuidado oral para o paciente crítico – https://ccforum.biomedcentral.com/articles/10.1186/s13054-021-03765-5
Diretrizes de higiene oral em ambiente de terapia intensiva – https://cbrohi.org.br/2021/10/diretrizes-de-higiene-oral-em-ambiente-de-terapia-intensiva/
Doença Periodontal, Fibrilação Atrial e AVC https://doi.org/10.1016/j.ahj.2021.01.009
É necessário ter um dentista dentro de uma equipe de unidade de terapia intensiva? Relatório de um ensaio clínico randomizado https://doi.org/10.1111/idj.12397
Colonização por patógenos respiratórios da placa dentária, vias aéreas inferiores e biofilmes do tubo endotraqueal durante a ventilação mecânica https://doi.org/10.1016/j.jcrc.2016.07.019
Uma abordagem sistemática para o desenvolvimento de um pacote de prevenção de pneumonia associada à ventilação mecânica https://doi.org/10.1016/j.ajic.2015.12.020
Guia SHEA de PAV na prática: https://www.ccih.med.br/guia-shea-de-pav-na-pratica/
Prevenção e controle de infecção: https://www.ccih.med.br/como-e-por-que-controlar-as-infeccoes-hospitalares/
Sinopse por: Maria Julia Ricci
E-mail: maria.riccifer[email protected]
Instagram: https://www.instagram.com/sonojuju/
Linkedin: www.linkedin.com/in/mariajuliaricci/
TAGs Palavras chave: cirurgião dentista, pneumonia associada a ventilação, PAV, terapia intensiva, cuidados orais, doenças periodontais, sepse, mortalidade, equipe multidisciplinar, higiene oral, placa dentária, biofilme
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