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Correlação entre uso de antibióticos e resistência a antibióticos

Um estudo multicêntrico usando um novo sistema para vigilância epidemiológica em saúde e prevenção de infecções do Japão.

A resistência a antibióticos é um problema complexo e multifatorial que impacta a assistência a saúde em todo o mundo. Esse estudo multicêntrico analisa a existência de correlação entre o uso de antibióticos e a resistência a antibióticos em centros de saúde do Japão, com base nos dados extraídos de um novo sistema de vigilância em saúde.

Qual o contexto do estudo?

Uma crescente ameaça a saúde pública global é o aumento da resistência a antibióticos, um problema multifatorial que tem o aumento do uso de antibióticos como uma das prováveis variáveis. A contribuição do uso de antibióticos para o aumento da resistência é, contudo, ainda nebulosa principalmente devido a escassez de estudos multicêntricos que estabeleçam de forma nítida essa relação.

O Japão, alinhado com o Plano Global de Ação para a Resistência a Antibióticos da OMS, implementou recentemente um novo sistema eletrônico de vigilância para a prevenção de infecções e vigilância epidemiológica em saúde (J-SIPHE). Esse sistema agrega dados relevantes sobre a resistência a antibióticos das instituições médicas do país, com o objetivo de viabilizar esses dados para serem utilizados na elaboração e promoção de medidas contra a resistência antibiótica. Entre os dados coletados estão o uso de antibióticos, a incidência das principais bactérias e das bactérias resistentes, e a incidência de IRAS e infecções da corrente sanguínea.

Qual o objetivo do estudo?

Esse estudo teve como objetivo avaliar a correlação ente o uso de antibióticos e a resistência a antibióticos na região de Hokkaido, com base nos dados reportada no sistema J-SIPHE. Foram analisadas as correlações entre o uso de antibióticos de amplo espectro e 5 bactérias Gram-negativas resistentes (Pseudomonas aeruginosa resistente a carbapenêmicos, Enterobacteriaceae resistente a carbapenêmicos, Escherichia coli resistente a fluoroquinolona, Escherichia coli resistente a cefalosporina de terceira geração e Klebsiella pneumoniae resistente a cefalosporina de terceira geração).

Qual a metodologia do estudo?

Esse foi um estudo transversal multicêntrico que coletou e analisou os dados relativos ao ano de 2020 de 19 hospitais da região de Hokkaido. Foram obtidos do sistema J-SIPHE os dados sobre o uso de antibióticos e as taxas de detecção das principais bactérias Gram-negativas resistentes a antibióticos durante esse período.

O estudo analisou o uso de antibióticos de amplo espectro – os antibióticos incluídos foram piperacilina/tazobactam, cefalosporinas de terceira geração, cefalosporinas de quarta geração, carbapenêmicos, aminoglicosídeos e quinolonas – por meio da densidade de uso de antibióticos (AUD, ie gramas usadas por dia/dose diária definida x 100 pacientes-dia). O número de bactérias resistentes detectadas por 1000 pacientes dia também foi analisado.

Quais foram os principais resultados?

Em relação ao uso de antibióticos, nos 19 hospitais do estudo os mais utilizados foram quinolonas (AUD=3.24) e cefalosporinas de terceira geração (AUD=3.01). Já o uso de carbapenem teve AUD de 1.13. Em relação a resistência antibiótica, os organismos resistentes mais frequentemente detectados foram E. coli resistente a fluoroquinolonas e E. coli resistente a cefalosporinas de terceira geração.

O estudo identificou diversas correlações entre o uso de antibióticos e as taxas de detecção de resistência. Foram identificadas as seguintes correlações entre o uso de antibióticos e a resistência a antibióticos:

Para P. aeruginosa resistente a carbapenêmicos teve a taxa de detecção positivamente correlacionada com o uso de carbapenem e negativamente correlacionada com o uso de cefalosporinas de terceira geração. Já para Enterobacteriaceae, a taxa de detecção foi positivamente correlacionada com o uso de cefalosporinas de quarta geração.

Para E. coli resistente a fluoroquinolonas houve correlação significativamente positiva entre a detecção e o uso de quinolonas, de piperacilina/tazobactam, e de carbapenêmicos.

Já para E. coli e K. pneumoniae resistentes a cefalosporinas de terceira geração houve correlação significativamente positiva com o uso de carbapenêmicos.

Correlações entre o uso de antibióticos também foram encontradas. Houve correlação significativamente positiva entre o uso de piperacilina/tazobactam e o uso de carbapenêmicos. Correlação significativamente positiva também foi observada entre quinolonas e piperacilina/tazobactam, cefalosporinas de quarta geração, e carbapenêmicos.

Quais as principais conclusões dos autores?

Em relação as correlações encontradas, os autores ressaltam que por se tratar de um estudo ecológico não é possível estabelecer com segurança a relação causal entre uso e resistência a antibióticos, contudo, foram constatadas diversas correlações entre os dados de uso e resistência a antibióticos. Destacam ainda que a resistência a antibióticos é um problema multifacetado, sendo afetado por diversas variáveis entre as quais o uso de antibióticos e, dessa forma, o monitoramento dos dados de uso e resistência a antibióticos pode constituir um fator essencial dos programas de stewardship. Os autores concluem, portanto, que o uso do sistema J-SIPHE foi um facilitador das análises de correlação. Ressaltam ainda que compartilhar as análises e dados com as unidades regionais pode potencialmente contribuir para a elaboração de medidas de prevenção a resistência a antibióticos nas instituições de saúde.

Quais as limitações do estudo?

Os autores ressaltam diversas limitações do estudo. Primeiro, esse foi um estudo retrospectivo que não levou em consideração a heterogeneidade de estruturas inclusas. Segundo, a correlação entre uso e resistência a antibióticos foi analisada com base em dados do mesmo período, desconsiderando possíveis delays na apresentação das taxas de resistência. Terceiro, o uso de AUD pode não corresponder fielmente a realidade devido a vieses intrínsecos a essa medida (como por exemplo a não contabilização do ajuste de doses para populações especiais). Finalmente, não foi realizada uma análise multivariável e, portanto, possíveis confundidores não foram considerados.

FAQ: A Correlação Entre Uso e Resistência a Antibióticos

1. Qual é a correlação fundamental entre o uso de antibióticos e o desenvolvimento de resistência?

A correlação é direta e cientificamente comprovada: quanto maior o consumo de antibióticos em uma população (seja em um hospital, uma cidade ou um país), maior a prevalência de bactérias resistentes a esses antibióticos. O uso de antibióticos é o principal motor da resistência antimicrobiana.

2. Como funciona o mecanismo de “pressão seletiva” dos antibióticos?

Quando um antibiótico é administrado, ele elimina as bactérias suscetíveis, mas as poucas que possuem alguma mutação natural que lhes confere resistência sobrevivem. Sem a competição das outras bactérias, essas resistentes se multiplicam livremente, tornando-se a população dominante. Isso é a pressão seletiva: o antibiótico “seleciona” as bactérias mais fortes.

3. Essa correlação ocorre apenas em nível hospitalar ou também na comunidade?

A correlação ocorre em todos os ecossistemas. No hospital, onde o uso de antibióticos de amplo espectro é intenso, a pressão seletiva é altíssima e o problema é mais grave. No entanto, o uso indiscriminado na comunidade (ex: para tratar gripes e resfriados) também impulsiona a resistência em patógenos comunitários.

4. Todo uso de antibiótico, mesmo quando indicado corretamente, contribui para a resistência?

Sim. Mesmo o uso apropriado de um antibiótico exerce pressão seletiva sobre a microbiota do paciente. A diferença é que o uso correto traz um benefício clínico que supera o risco. O objetivo do uso racional não é eliminar a pressão seletiva (o que é impossível), mas minimizá-la, garantindo que os antibióticos sejam usados apenas quando necessários.

5. Qual é a principal estratégia para combater essa correlação e mitigar a resistência?

A principal estratégia é a implementação de Programas de Gerenciamento do Uso de Antimicrobianos, mais conhecidos como Antimicrobial Stewardship Programs (ASP). O objetivo é otimizar o uso de antibióticos para melhorar os desfechos dos pacientes e, ao mesmo tempo, minimizar as consequências indesejadas, como a resistência.

6. Quais são os objetivos de um programa de Antimicrobial Stewardship (AMS)?

Os objetivos são: 1) Garantir que todo paciente receba o antibiótico certo, na dose certa, pela via certa e pelo tempo certo; 2) Reduzir a ocorrência de resistência antimicrobiana; 3) Diminuir os custos relacionados ao uso de antimicrobianos e ao tratamento de infecções resistentes; 4) Melhorar a segurança do paciente, reduzindo eventos adversos a medicamentos.

7. Qual o papel do médico prescritor no uso racional de antibióticos?

O médico está na linha de frente e seu papel é crucial. Ele deve: 1) Prescrever antibióticos apenas quando houver evidência de infecção bacteriana; 2) Seguir protocolos clínicos baseados em dados de sensibilidade locais; 3) Coletar culturas antes de iniciar o tratamento; 4) Reavaliar a antibioticoterapia em 48-72h, considerando o descalonamento.

8. Como o farmacêutico clínico atua como um pilar do time de Stewardship?

O farmacêutico é o especialista do time. Ele realiza a revisão prospectiva das prescrições, analisa a adequação de dose (especialmente em insuficiência renal), verifica interações medicamentosas, monitora o consumo de antimicrobianos (Dose Diária Definida – DDD) e atua como um educador para a equipe multiprofissional.

9. De que forma a equipe de enfermagem participa ativamente do programa de AMS?

A enfermagem é vital para o sucesso do programa. Sua participação inclui: 1) Garantir a coleta correta de culturas antes da primeira dose do antibiótico; 2) Questionar e esclarecer dúvidas sobre a prescrição; 3) Monitorar a resposta do paciente ao tratamento e comunicar à equipe; 4) Orientar o paciente sobre a importância de completar o tratamento.

10. O que é “descalonamento” de antibióticos e por que é importante?

Descalonamento é a prática de trocar um antibiótico de amplo espectro (que atinge muitas bactérias), geralmente usado no início do tratamento empírico, por um de espectro mais estreito (mais específico) assim que o resultado da cultura e do antibiograma estiver disponível. Isso reduz a pressão seletiva sobre a microbiota do paciente.

11. Por que a otimização do tempo de tratamento é uma medida chave do AMS?

Estudos mostram que muitos tratamentos com antibióticos são mais longos do que o necessário. Cursos mais curtos, quando apropriados, são igualmente eficazes para a maioria das infecções e diminuem a exposição do paciente ao antibiótico, reduzindo a pressão seletiva, os efeitos colaterais e os custos.

12. Como o antibiograma (Teste de Sensibilidade a Antimicrobianos – TSA) guia o uso racional?

O antibiograma informa a quais antibióticos a bactéria causadora da infecção é sensível ou resistente. Ele é a principal ferramenta para guiar a terapia-alvo, permitindo o descalonamento e garantindo a escolha do tratamento mais eficaz, evitando o uso de antibióticos aos quais a bactéria já é resistente.

13. O que é um “antibiograma em cascata”?

É uma estratégia de laboratório onde apenas os resultados dos antibióticos de primeira linha ou de espectro mais estreito são liberados inicialmente. Os resultados de drogas de amplo espectro só são mostrados se a bactéria for resistente às primeiras opções. Isso “induz” o prescritor a escolher a opção mais racional.

14. Como a CCIH (Comissão de Controle de Infecção Hospitalar) e o time de AMS trabalham juntos?

São parceiros inseparáveis. A CCIH fornece os dados epidemiológicos de resistência locais (o perfil de sensibilidade do hospital) que guiam os protocolos de tratamento do AMS. Por sua vez, o AMS é uma das principais ferramentas da CCIH para prevenir a emergência e a disseminação de superbactérias.

15. Quais classes de antibióticos estão mais associadas ao desenvolvimento de resistência de importância crítica?

O uso excessivo de cefalosporinas de 3ª e 4ª geração, carbapenêmicos e fluoroquinolonas está fortemente associado à seleção de bactérias multirresistentes de grande preocupação, como enterobactérias produtoras de ESBL e KPC, e Acinetobacter resistente a carbapenêmicos.

16. O uso de antibióticos em um paciente pode afetar outros pacientes no mesmo hospital?

Sim. O uso de antibióticos seleciona bactérias resistentes na microbiota de um paciente. Esse paciente, agora colonizado por uma superbactéria, pode se tornar um reservatório, transmitindo esse microrganismo para outros pacientes através das mãos dos profissionais de saúde ou do ambiente contaminado.

17. O que é “terapia empírica” e como ela deve ser guiada?

Terapia empírica é o tratamento iniciado antes da identificação do patógeno, com base na suspeita clínica. Para ser racional, ela deve ser guiada pelos dados de sensibilidade locais (o perfil do hospital), e não apenas em diretrizes gerais, e deve ser reavaliada em 48-72 horas.

18. Existe um plano nacional no Brasil para combater a resistência antimicrobiana?

Sim. É o Plano de Ação Nacional de Prevenção e Controle da Resistência aos Antimicrobianos (PAN-BR), coordenado pelo governo federal. Ele envolve ações de vigilância, controle de infecção, uso racional de antimicrobianos na saúde humana e animal, e pesquisa e inovação.

19. O uso de antibióticos na agropecuária também contribui para o problema?

Sim. O uso extensivo de antibióticos em animais de produção (para tratamento ou promoção de crescimento) também gera pressão seletiva e pode levar ao surgimento de bactérias resistentes que podem ser transmitidas a humanos através do ambiente ou da cadeia alimentar. Este é um pilar da abordagem “Saúde Única” (One Health).

20. Onde os profissionais podem encontrar diretrizes atualizadas sobre o tratamento de infecções?

As melhores fontes são as diretrizes publicadas por sociedades de especialidade, como a Infectious Diseases Society of America (IDSA) e a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), além dos protocolos clínicos e terapêuticos (PCDTs) do Ministério da Saúde e os protocolos institucionais baseados em dados locais.

 

Fonte: Kagami K, Ishiguro N, Iwasaki S, et al. Correlation between antibiotic use and antibiotic resistance: A multicenter study using the Japan Surveillance for Infection Prevention and Healthcare Epidemiology (J-SIPHE) system in Hokkaido, Japan. Am J Infect Control. 2023;51(2):163-171. http://doi.org/10.1016/j.ajic.2022.05.025

Sinopse por Maria Julia Ricci

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E-mail: maria.ricciferreira@edu.unito.it

Links relacionados:

Plano nacional para a prevenção e o controle da resistência aos antimicrobianos – https://www.ccih.med.br/plano-nacional-para-a-prevencao-e-o-controle-da-resistencia-aos-antimicrobianos/

Introdução a epidemiologia para sistemas de saúde – https://www.ccih.med.br/introducao-a-epidemiologia-para-sistemas-de-saude/

Novo guideline de tratamento de infecções por bactérias gram-negativo resistentes da Sociedade Americana de Doenças Infecciosas – https://www.ccih.med.br/novo-guideline-de-tratamento-de-infeccoes-por-bgn-resistentes-da-sociedade-americana-de-doencas-infecciosas-idsa/

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